Famílias contam suas perdas para a covid-19Arte: Kiko

Rio - Há pouco mais de um ano, o país passou o período mais crítico da pandemia de coronavírus. Hoje, vivemos um período de menos letalidade, mas muitas famílias relembram a partida dos seus amados naquele auge de óbitos. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) elevou o estado da contaminação à pandemia de covid-19. O primeiro caso no Brasil já tinha sido anunciado em fevereiro, em São Paulo. No Estado do Rio, no início de março. O número de mortes cresceu rapidamente, e somente em julho de 2021 os números começaram a cair, com o avanço vacinal.
Dizemos que “a vida continua”, mas quem continua após ser marcado por uma cicatriz tão profunda merece contar sua história, merece mostrar que sua saudade não é um número, mas um nome e uma trajetória. Dentre tantas histórias, vamos contar cinco, sendo que três delas deixaram cicatrizes no próprio O DIA: eram profissionais da casa, colegas de trabalho muito queridos, que deixaram boas recordações na equipe. Mesmo em home office, eles se contaminaram de forma letal: Aloy Jupiara Braz Teixeira, editor-chefe do jornal; José Cândido do Nascimento, especialista financeiro; e Manoel Cavalcante Junior, diretor financeiro.
“Vem logo embora”
Gentileza no trato tanto no ambiente de trabalho quanto fora dele – e um amor imenso pelo Rio e o Carnaval. O imperiano Aloy Jupiara poderia ser resumido por essas qualidades. Na família, era o tio querido, que amava receber as fotos dos pequenos em cada novidade. E que não teve tempo de cumprir um compromisso que pra ele era essencial e já estava marcado: batizar Yan, hoje com 6 anos, que já chamava o tio de ‘dindo’ e mandou o mais caloroso e inocente recado que uma pessoa pode receber de uma criança quando se está internada: “Vem logo embora”, em resposta a uma foto tirada pelo médico antes de Aloy ser intubado. Caçula de três irmãos, o jornalista morava no Méier e partiu aos 56 anos, no dia 12 de abril de 2021.
“Estávamos sempre juntos no Ano Novo ou no Natal. Principalmente depois que as crianças nasceram. Ele era um tio muito apegado. Quando ele falou comigo que estava com covid, ainda em casa, disse que estava tudo bem. Nós nos falávamos praticamente todos os dias”, conta Marcus Braz Teixeira, dois anos mais velho que o irmão e morador de Magé. Ele relatou que uma das lembranças mais antigas da infância é de um Carnaval, assistido pela TV, quando Aloy, muito pequeno, falou: “Sou Império Serrano.” E foi sempre.
Marcus, pai de Yan e de Lívia, de 3 anos, ficou sendo o responsável familiar nos duros momentos que acompanhou o tempo de internação de Aloy, que era solteiro. Cerca de uma semana após testar positivo, o jornalista foi para o hospital, no dia 29 de março.
“Eu não o vi internado, era uma área de isolamento. Foi durante esse processo que nós, da família, descobrimos o tamanho da rede de amigos e o tanto ele que era querido por todos. No dia do seu falecimento, fui ao hospital à tarde assinar um documento para que fosse realizado um procedimento médico, que nem chegou a acontecer. Na mesma noite, Aloy 'virou estrelinha', como falam meus filhos. E ele nos faz muita falta." Pelo calendário vacinal do Rio, Aloy seria imunizado com a primeira dose cerca de 50 dias após aquela data.
Marcus relata que precisou ficar dois dias na capital para resolver as questões burocráticas, como a cremação, processo feito junto com o irmão mais velho. Hoje, os irmãos seguem suas vidas, mas saber que os encontros de família agora terão sempre uma ausência causou uma mudança nessa dinâmica. “Nós três [os irmãos] sempre fomos muito amigos. Mas a impressão que eu tenho é que as duas famílias que ficaram estão mais próximas ainda: passamos a nos ver mais,” constata Marcus.
“À noite, sei que a porta não vai mais abrir”
“Quando o José partiu, eu estava também com covid e não pude nem abraçar meus filhos. Como queria um abraço! Toda partida é triste, mas de covid, é pior. No hospital, fiz o reconhecimento do corpo de longe. Mas não pude me aproximar para vesti-lo, colocar uma rosa em suas mãos, fazer uma oração”, relembra, ainda com muita dor, Ana Carmelita de Lima, então com 49 anos. No dia 21 de abril de 2021, a covid ‘sequestrou’ o amor da sua vida, José Cândido do Nascimento. Candinho, como era carinhosamente conhecido pelos colegas do jornal, onde trabalhou por 23 anos, tinha 55.
José Cândido era atento a cada detalhe da vida de Ana e dos filhos – Felipe Augusto, de 23 anos; Gustavo Henrique, 17, e Eduardo Afonso, de 9. Foram 24 anos de um casamento feliz, de muita união. “Ele cuidou dos meus curativos após as cesarianas. Dava banho nos bebês até o umbiguinho cair. Depois, era a preocupação com a escola, esperava cada um entrar em sala de aula para começar o dia; ligava para saber como tinha sido a aula. Se começava a chover, os meninos ligavam para o pai para saber se ele estava com guarda-chuva. Somos o tipo de família que faz tudo junto. No Natal, era uma diversão montar a árvore”, relembra.
Ana passou a fazer terapia e ter acompanhamento com psiquiatra. Sem conter o choro, ela conta que ainda hoje sofre muito. Afinal, ela passou a maior parte de sua vida com José Cândido. E ainda tem o lado mãe. Eduardo é uma criança com transtorno do espectro autista, e para dar a pior notícia, ela recorreu ao neurologista que já cuida do garoto. “No início, ele não aceitava, dizia que era mentira.”
Quando José Cândido testou positivo, já foi internado e intubado – mas sob protestos: ele não queria ficar longe da esposa e dos filhos, mesmo já com muita falta de ar. Ana conversou com o marido sobre a necessidade da internação. Foi a última vez que se viram. Ele ficou 14 dias intubado, mas seu coração não resistiu a um remédio para combater uma nova infecção.
“Eu não sabia o que fazer da minha vida. Não sou mais a mesma, emagreci 20 quilos, fiquei hipertensa, com depressão. No início, ia com os dois mais novos ao cemitério e ficava ao lado do túmulo, tal era o meu grau de desespero. Se estava frio, queria levá-lo da casa, proteger do tempo. A gente não se enxergava um sem um outro, fazíamos planos para quando ficássemos velhinhos”, revela Ana, que emenda: “O momento mais difícil é à noite. Olho para a porta e sei que ela não vai mais abrir”.
José Cândido já tinha data para tomar a primeira dose de vacina: 7 de junho, dia do seu aniversário. No último dia 11, aniversário de Eduardo, Ana fez um bolo para o garoto, que se sentiu presenteado por um momento surpreendente. “Mamãe, papai veio ao meu aniversário. Você não está vendo?”. O irmão Gustavo confidenciou à mãe: “Eu não vi nada, mas me arrepiei todo”. Covid não mata amor.
‘Cate seus caquinhos’
Colegas de profissão por anos e amigos que se falavam também no fim de semana, Cândido e Manoel foram vencidos pelo vírus no mesmo dia. Manoel tinha 49 anos, entrou no DIA ainda como estagiário. Um ano depois, aos 21, ele se casou com América Torres da Silva Cavalcante, de quem foi abruptamente separado em 21 de abril do ano passado. Ele estava internado desde o Domingo de Páscoa, 4 de abril.
“Na pandemia, descobri que não dá para programar o futuro. Mas a terapeuta percebeu que eu estava tentando ser forte de um jeito errado. Ela disse ‘você tem que viver o luto, não fique segurando o choro. Cate seus caquinhos, faça um mosaico de você e continue vivendo.’ De dezembro pra cá, tento viver intensamente, procuro a natureza para me recarregar. Porque amanhã, pode não haver tempo suficiente”, conta América, que é fonoaudióloga e professora.
Manoel sofria de asma, e quando os sintomas começaram a aparecer, como febre, ele foi ao pneumologista, que não recomentou o antibiótico naquele momento. No Sábado de Aleluia, a febre piorou e no dia seguinte ele foi intubado, no mesmo hospital onde a filha dele, Heloísa, trabalha como técnica de enfermagem.
América conta que está reaprendendo a viver com essa ausência. O filho Lucas, de 19 anos, segundo ela, teve que amadurecer da noite para o dia. “Foi uma mudança radical, Manoel era bem protetor, provedor, eu perdi o chão. Estou aprendendo a cuidar de coisas que ele resolvia, como administrar as finanças. Sorte que ele estava preparando nosso filho, que organizou o enterro. Manoel queria aproveitar a vida, curtir a nossa netinha [de 3 aninhos], filha da minha enteada Heloísa."
Não bastasse esse luto, a mãe de Manoel perdeu ainda um outro filho, de 50 anos, pela mesma doença. “Ela ficou muito mal emocionalmente. Meu marido ligava todos os dias para a mãe. Ela nem tem forças para vir aqui, meu filho que tem ido visitá-la.”
A professora conta que no início, sentia muito medo, “mas estou aprendendo a deixar a vida me levar”.
“Ela deu à luz e não pôde tocar na filha”
“Minha prima Ellen estava sempre lá em casa, passando férias, fins de semana, éramos como irmãs. Minha mãe era madrinha dela. Há uns quatro anos, ela perdeu a mãe e foi morar com os meus pais, em Volta Redonda. Casou e depois de um tempo, engravidou. Na pandemia, ela sentia um medo muito grande, uma certeza de que não iria viver muito. Com seis meses de gestação, ela se contaminou”, conta a jornalista Waleska Borges.
Ellen Tavares Campos Werneck, 39 anos, era segurança do trabalho, mas como estava desempregada, dirigia carro de aplicativo. Ana Luisa nasceu em 23 de março, prematura. Ela só viu o bebê na hora do parto e já foi para o CTI. “Ela deu à luz mas não pôde dar colo, tocar na filha”, lamenta Waleska. O caso se agravou, ela foi intubada, mas o vírus foi implacável. E mais um caso de luto duplo: dois dias antes de perder a esposa, o marido de Ellen, Altanair Lúcio Costa, perdeu a mãe para a covid.
“Foi um sofrimento enorme para a família. Ela jovem, grávida, a gente fazendo o enxoval do bebê, ela cheia de planos, sonhos, e tudo foi interrompido bruscamente. Minha mãe chora de saudade até hoje. A última imagem que tenho dela é no CTI. Pelo vidro e de máscara, ela me deu tchau e chorou quando viu o rosto da minha filha, Lara”, conta a jornalista.
Na época, ainda não estava liberada a vacina para as gestantes. Mesmo assim, Ellen foi duas vezes à clínica da família tentar se imunizar, mas nada feito. “Talvez, se o governo tivesse priorizado as gestantes antes, ela estaria aqui”. Em março, Ana Luisa fez um aninho. Waleska diz que foi impossível se controlar: “chorei bastante”.
“Um guerreiro”, comenta a prima de Elle sobre o pai de Ana Luisa, que é criada sozinha por ele. Sem avós vivas, e sem a mãe, a pequena recebe toda a atenção do papai, que não falha nos dias da fisioterapia que ainda é necessária por ter sido prematura.
“Ela é saudável, já está na creche, espertinha, linda e feliz. O pai faz questão de já falar da mãe para ela, espalhou as fotos de Ellen pela casa, e a gente vai levando tudo com muita saudade. Foi uma morte muito brusca. E sempre pensamos: ‘Ah, se a Ellen estivesse aqui...’”
“Papai vai ficar bom?”
“Eu conheci o Antônio com 17 anos. Estávamos casados há 27. Contando a fase de namoro, tivemos uma história de 30 anos. Num primeiro momento, era difícil aceitar essa fatalidade, era como se fosse contra a vontade Deus. Com o tempo, me conformei de que seria a vontade de Deus recolher meu marido.” Assim começa o depoimento de Mônica de Carvalho Costa Rodrigues, que lamenta a ausência daquele com quem construiu uma família, passou seus melhores anos de juventude, dividiu sonhos. Eles tiveram Alhandra, hoje com 9 anos. Antônio Augusto Dantas Rodrigues tinha 51 quando chegou ao fim sua batalha, dia 27 de maio.
“Quando recebi a notícia, pensei que teria que ser firme por causa da minha filha; ao mesmo tempo, achava que eu não seria mais nada. A não ser uma mãe vazia”, relata Mônica. A menina tentou se defender de tamanha dor evitando o assunto, fugindo de uma realidade tão injusta. Onde estaria aquele pai que dava mil demonstrações de carinho, que sempre que preparava seu lanche para a escola, colocava junto um bilhetinho recheado de amor e de motivação?
O vendedor de automóveis, como bom filho que era, levou o pai ao hospital quando este pegou covid. Quatro dias depois, ele começou a sentir uma leve falta de ar e teve febre. Na clínica da família, mandaram que ele voltasse para casa e aguardasse o resultado do exame. Mas no dia seguinte, seu estado piorou. Foi e voltou do pronto-socorro. “Começamos nossa luta: chamávamos o Samu, tínhamos que continuar aguardando em casa. Na terceira vez, ele estava tão debilitado que o Samu chegou com dois cilindros de Oxigênio. No dia seguinte, fomos para a UPA de Realengo e ficamos aguardando uma unidade que tivesse vaga no CTI.”
Mônica teve a ideia de fazer, de forma particular, uma tomografia, que daria um resultado mais rápido do que o primeiro exame. A tomografia indicou que Antônio estava com 25% a 40% de compromentimento pulmonar. Dois dias depois, e bastante debilitado, Antônio foi internado no CTI do Hospital de Acari, referência para tratamento de covid na época. Mas nada foi suficiente.
O vendedor não teve oportunidade de se beneficiar da chegada das vacinas. Quando Mônica recebeu a notícia pelo cunhado, viu que seria melhor não ir ao hospital para conversar e apoiar Alhandra. “O choque dela foi grande, mas só não foi pior porque que eu vinha preparando o terreno. ‘Papai vai ficar bom?’ ‘Pode ser que não. Pode ser que papai do céu resolva levá-lo, e a gente vai se cuidar por aqui e ele vai cuidar de nós por lá’”.
Estava no fim as férias de Mônica, que é operadora de negócios. Ela ganhou mais cinco dias da empresa, mas logo voltou à rotina. “O pior foi passar o luto trabalhando, não só na empresa, mas em casa, tomando atitudes, tendo que mudar de casa, porque me senti muito vulnerável onde morávamos.”
A saudade se mistura com admiração. “No momento em que ele era meu marido, foi muito bom marido. Mas no momento que ele foi pai, ele foi o melhor pai da face da Terra. Depois que eu reconheci a paternidade no Antônio, eu descobri que ele era especial demais. A hora de dormir é muito ruim, porque era um momento muito dele com a Alhandra. Quando estou agarradinha com ela, lembro que era o momento preferido dele.”

Para a Alhandra, segundo a mãe, os piores momentos são aqueles em que ele vibraria por ela. “Na semana passada, ela dançou na festa junina da escola e depois foi para o banheiro chorar. Ela não queria nem dançar, porque o pai não estaria mais lá, assistindo.”
Mônica faz seu relato quase sempre utilizando o “nós”. Para ela, a união das duas ficou tão forte que nem parece que existe uma diferença grande de idade. “Enfrentamos nossas dificuldades financeiras, também estou fragilizada, por causa de um tratamento médico, e ela tem sido minha fortaleza. Se uma parece que vai cair, a outra se esforça para segurar.”
“Hoje, a gente tem o entendimento de que ele teve uma história aqui para contar. Ele não pode contar, mas a gente faz muita questão de contar pra todo mundo”, sentencia Mônica.