Rio - Do desejo de eternizar figuras importantes da nossa cultura negra, nasceu em 2018 o projeto 'Negro Muro', idealizado pelo pesquisador e produtor cultural Pedro Rajão e pelo artista urbano Cazé. Na Lapa e em diversos outros bairros do Rio, já foram pintadas 36 personalidades negras da nossa história, nem sempre conhecidas pelo grande público.
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A proposta é essa: transformar as ruas da cidade numa grande galeria de arte a céu aberto com o objetivo de trazer representatividade e resistência aos homens e mulheres negros e negras que fizeram e fazem parte da nossa história, da nossa cultura e da nossa memória.
"É uma verdadeira cartografia preta espalhada pela cidade, sempre fazendo a relação desse personagem, dessa figura histórica com o bairro onde morou ou trabalhou. O que a gente quer é ajudar a ampliar a representatividade negra nos espaços urbanos. Cada um desses murais pintados nos emociona. É bom ver a resposta do público nas ruas e também dos familiares dos retratados. O projeto é isso: arte, resistência, representatividade", afirma Rajão.
Da troca com o parceiro Cazé, surgem os nomes escolhidos pela dupla. Antes de a pintura iniciar, há todo um trabalho de pesquisa para chegarem a um consenso sobre quem será o próximo retratado e quais elementos vão ajudar a compor a imagem.
"Essa bola que a gente troca é muito rica e prazerosa. Ele traz as ideias dele, eu trago as minhas. A gente discute a relação dessa figura com o local da pintura. Acaba que a gente trabalha como arte-educador, também, porque ao longo do processo do fazer artístico, o Pedro contextualiza essa pessoa para aquele território que, muitas vezes, desconhece a existência dela", explica Cazé.
Para Rajão, a "dita história oficial fez o apagamento deliberado e sistemáticos das nossas origens negras, dos homens e mulheres que compõem nossa formação e contam o que fomos e somos como brasileiros, como povo". Por isso, ele e Cazé veem no Negro Muro a oportunidade de contribuir para essa reparação histórica, divulgando, ensinando e eternizando o nome dessas pessoas espalhados pelos muros e murais da cidade.
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos é doutora em História Social pela USP, professora da Universidade Federal Fluminense e autora de diversos livros, entre eles, o mais recente a ser lançado "Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Ed. Todavia, junho 2022)". Ela acredita que iniciativas como essa do Negro Muro são fundamentais.
"Trazer essas histórias é, na minha opinião, uma das etapas fundamentais na construção de uma agenda antirracista no Brasil, na medida em que a gente revela as ações de sujeitos negros ao longo da nossa trajetória. E fazer isso por meio da arte - e não é qualquer arte, é uma arte muralista - é também uma forma de reivindicar o espaço público como o espaço também de disputa dessas narrativas. Uma iniciativa que está fazendo da cidade um outro espaço de memória", afirma a historiadora.
Dos 36 murais até agora, o mais recente foi inaugurado no dia 24 de junho, na Rua da Lapa, Centro do Rio. Ele homenageia o lutador baiano Waldemar Santana (1929-1984), conhecido como o Leopardo Negro. Em 1955, numa luta histórica, que durou três horas e quarenta e cinco minutos, Waldemar enfrentou seu mestre Hélio Gracie e venceu por nocaute o idealizador do jiu-jitsu brasileiro. O mural foi pintado em frente à sede da Associação Cristã dos Moços (ACM), onde aconteceu a luta histórica vencida por Waldemar.
A jornalista Mara Santana, de 54 anos, filha de Waldemar, veio da Bahia para a inauguração e diz que foi um dos momentos mais emocionantes de sua vida.
"Papai foi mesmo um homem incrível. Uma pessoa simples, bem humilde que, com muita dificuldade, fez sua linda caminhada e enfrentou de cabeça erguida as dificuldades impostas pelo racismo. Sempre me orgulhei muito dele e sou só gratidão ao projeto Negro Muro por dar vez e voz a ele. Na figura de papai e de todos os outros retratados, são representados também todos os negros e negras que lutam diariamente nesse país", disse ela, contando ainda que está terminando um livro sobre a história de seu pai.
As ruas falam
Além da Lapa, há muros pintados também em Marechal Hermes, Vila Isabel, Botafogo, Cachambi, Santa Teresa, Todos os Santos etc. O único fora do município do Rio fica em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, e retratou o marinheiro João Cândido, líder da Revolta da Chibata, eternizado na música de João Bosco, "Mestre-Sala dos Mares", que diz: "Glória a todas as lutas inglórias, que através da nossa história não esquecemos jamais, Salve o Navegante Negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais."
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O painel em homenagem a ele foi feito no muro da casa onde João Cândido morou e onde, até hoje, vive seu filho, Adalberto Cândido, de 83 anos. "Cada um desses murais é especial pra gente, mas, por tudo o que representa, esse é um dos mais significativos. Mas é como filho, né! (risos). Todos são igualmente especiais. O da Elza Soares, da Lélia Gonzalez, do Lima Barreto, do Paulinho da Viola, do Luiz Gonzaga e tantos outros. Posso citar todos?", brinca Rajão.
Entre os "filhos" da dupla, tem também: a pintura de Marielle Franco, com mais de três metros de altura, na Rua André Cavalcanti, na Lapa, feita no dia seguinte ao assassinato da vereadora, em março de 2018; na Rua dos Inválidos, também na Lapa, chama a atenção a imagem de Cartola, com quatro metros de altura; em Água Santa, a pintura de Elza Soares encanta quem passa por lá; também na Lapa, na Rua do Riachuelo, está o rosto de Mãe Beata de Iemanjá, uma pintura de cinco metros de altura; entre outros.
O babalorixá Adailton Moreira, filho biológico e sucessor de Mãe Beata de Iemanjá, fundadora do tradicional terreiro Ilê Omijuarô, localizado no Bairro de Miguel Couto, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, diz que o trabalho de Cazé e de Rajão é de extrema sensibilidade e, ao mesmo tempo, um ato político: “É belo como arte e belo como reafirmação da cultura negra do nosso país. Traz representatividade, legitimidade de nossos valores ancestrais, culturais, artísticos e históricos. Como filho de Mãe Beata de Iemanjá, fiquei muito feliz e emocionado com a homenagem”.
Muros musicais
Como a proposta é ampliar a representatividade negra nos espaços urbanos, os retratados são de várias áreas distintas: tem esportistas, cantores, escritores, etc. Em geral, os mais reconhecidos pela população são os de músicos, como Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga e Martinho da Vila. Para os familiares, uma emoção. Para a população que passa e se surpreende com as belíssimas pinturas, um aprendizado a cada muro pintado.
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Em Botafogo, na Zona Sul do Rio, entre as ruas Conde de Irajá com Pinheiro Guimarães, em maio, foi pintado o painel de um dos ícones do samba carioca, Paulinho da Viola. Uma das filhas do cantor, Julieta Faria, disse que foi muito emocionante presenciar a emoção do pai ao ver o resultado do trabalho de arte e de pesquisa feita por Cazé e Rajão.
"Nossa, foi incrível. Foi lindo demais ver meu pai receber essa homenagem. Meu pai nasceu em Botafogo. Onde foi pintado o painel foi na rua que ele jogava bola. Aquele entorno todo ali faz parte da vida e das lembranças do papai. O bairro, claro, traz muitas lembranças queridas. Papai amou. Ficou lá conversando, lembrando as histórias. A arte do Cazé ficou maravilhosa e o trabalho de pesquisa, as conversas e toda a troca com o Rajão também foram maravilhosas e fundamentais. Os meninos são realmente incríveis. Papai ficou muito feliz e emocionado, de verdade", contou Julieta.
Na Zona Norte, o painel pintando em homenagem a outra referência do samba encanta quem passa pela Rua Felipe Camarão, em Vila Isabel, reduto, claro, de Martinho da Vila, que teve seu mural inaugurado em outubro do ano passado. A neta Dandara Tuiuti, porta-bandeira do Tuiuti e moradora de Vila Isabel, conta que o avô, por conta da pandemia, preferiu não ir à inauguração do muro, mas ficou muito feliz com a homenagem, assim como os familiares que estiveram presentes ao lançamento.
"Frequento muito a Lapa e conhecia vários muros que o Cazé fez por lá. Já era fã do trabalho dele e do que essa proposta representa. Então, quando meu avó também foi retratado, nossa, foi pura emoção. É incrível porque além da arte, da pintura em si, tem todo um processo de pesquisa muito detalhista que faz toda a diferença. Leva elementos, detalhes pra pintura que realmente envolvem e surpreendem a pessoa retratada. Como arte é especial e como representatividade de nossa cultura e de nossa história negra é mais especial e lindo, ainda", afirma Dandara.
No Cachambi, também na Zona Norte do Rio, quem está lá retratado em um enorme e belíssimo muro é o Rei do Baião, Luiz Gonzaga, que foi pintado na Rua Ferreira de Andrade, onde morou. Para o cantor Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha e neto de Gonzagão, o trabalho de Cazé e de Rjão é importantíssimo e merece aplausos.
"Acho o máximo a ocupação do território cidade. Isso é importantíssimo. Além da arte, da questão estética, tem também o resgate da nossa história, da nossa gente. E nesse momento nefasto que o país está passando, precisamos ainda mais da arte como força política contra o autoritarismo, o obscurantismo, o fascismo e o preconceito", afirma Daniel.
Ele também ressaltou uma outra característica importante da proposta trazida pelo projeto Negro Muro. "Essa coisa da galeria a céu aberto que o trabalho do Cazé e do Rajão nos traz é incrível porque a concepção de arte em galeria é, de certa forma, uma coisa elitista, excludente, intimidadora pra muitas pessoas. Então, levar a arte, de fato, ‘para’ as ruas e ‘nas’ ruas é sim popularizar, dar acesso, democratizar, botar a arte ao alcance de todo mundo. E isso é maravilhoso", concluiu.
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O advogado Rogério Rufino, 36 anos, mora na bonita casa branca com detalhes azuis que pertenceu ao Luiz Gonzaga. Para ele, a homenagem demonstra a importância história do bairro. "Acho interessante para o local ter a ciência de que morou uma pessoa tão ilustre para a musica popular brasileira. Além disso, saber que, no passado, essa região do Cachambi, conhecida como 'Jardim Candelária', atraía pessoas ilustres. Por isso, há tantos casarões ao redor", explicou.
Perto dali, também mora Mirza Arruda, de 62 anos, que ficou emocionada com a bela obra próximo de sua residência. Ela conta que o ponto já virou sucesso na região e muitas fotos têm sido tiradas ao lado do Rei do Baião.
"A homenagem por si só já é maravilhosa pela importância do artista na nossa cultura musical. Agregada à bela causa da valorização, respeito e gratidão, explícita no próprio nome do projeto Negro Muro, torna-se ainda mais especial. Com certeza a obra tão ricamente projetada foi um ganho espetacular para a rua e vizinhanças, pois virou realmente uma grande atração, digna de fotos e filmagens constantemente. Um show completo", comemorou.
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