Santuário de Zé Pelintra, nos Arcos da LapaREPRODUÇÃO INTERNET

Rio - Em "As Religiões do Rio", o grande jornalista e escritor João do Rio apontou que a cidade carioca "tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa". A afirmação não poderia ser mais verdadeira. Na última terça-feira (16), a Câmara aprovou um projeto para incluir no calendário oficial da cidade o dia de Zé Pelintra, homenageado dia 7 de julho. A proposta é do vereador Átila Alexandre Nunes (PSD) e aguarda a sanção do prefeito Eduardo Paes.
"Estou plenamente de apoio. Temos dias relacionados aos santos sempre. Qual o problema de homenagearmos um ancestral africano?", questionou a pesquisadora e escritora Helena Theodoro, defendendo que: "a Constituição diz que todos são iguais perante a lei e que o Brasil é laico, sem distinção de credo ou religião".
Para a jornalista Luzia Lacerda, que apresenta o programa "Expo Religião", na TV Alerj, a ideia de ter o dia de Zé Pelintra é fantástica. "É o dia dele. Em determinados momentos da história só se fala em Zé Pelintra. Inclusive o prefeito, que vai sancionar ou não, usa um chapéu da entidade", pontuou a diretora, festejando na ação o respeito à diversidade religiosa. "Estou muito feliz enquanto diretora do Instituto Expo Religião ver mais duas religiões (umbanda e catimbó) sendo agraciadas com a data. Chegaremos ao ponto que teremos todas as datas também homenageadas e contempladas", afirmou.
Dia 7 de julho, como conta Luzia, é apontado por muitos pesquisadores como a data da morte de José Pereira dos Anjos, que deu origem à Zé Pelintra, mas ainda não há comprovações. Sabe-se somente que foi em 1920.  
Neste ano, o malandro foi levado e saudado na Sapucaí, junto com Exu, pela campeã do Carnaval 2022, Grande Rio. Para Leonardo Bora, um dos carnavalescos da escola, o culto às entidades deve ir além da festividade. "É muito importante que os espaços institucionais sejam ocupados pelos debates que envolvem as religiões de matriz africana contra o processo histórico de demonização", defendeu. O carnavalesco entende que Zé Pelintra, com a criação da data, será recolocado em seu devido lugar enquanto divindade: "não enquanto algo associado ao mal, ao demônio judaico-cristão. É outra coisa, uma outra cosmovisão", disse.
"Acho que ter um dia para celebrar a entidade é reconhecer não só a pluralidade religiosa, mas perceber a importância histórica que esse personagem tem para a formação cultural da cidade do Rio de Janeiro", frisa Vinicius Natal, escritor, historiador e pesquisador do enredo campeão da Grande Rio. Vinicius pontuou também sobre a pertinência que a data terá para enfrentar a intolerância religiosa.
"Há um grande número de terreiros atacados, não só no estado, mas também na cidade do Rio. O racismo religioso é um dos principais problemas que temos que enfrentar hoje, no sentido de que é preciso enxergar toda a diversidade e a pluralidade de crenças que existem, principalmente se tratando das religiões de matriz africana, que são a base de construção da cidade e da cultura carioca", explicou Natal.
O reconhecimento de Zé Pelintra como divindade, junto com a aprovação do projeto na Câmara e abertura do espaço para o debate sobre racismo religioso, toca, por fim, em outro ponto crucial: a representatividade. Milton Cunha, comentarista de Carnaval e carnavalesco, lembrou a importância de se homenagear heróis negros. "O calendário brasileiro é repleto de santo católico, de herói branco e você não tem a representatividade de 52% [da população brasileira] em datas de heróis negros, de santos negros. Até a libertação dos escravos é pela princesa branca. Ô, país que não celebra a Negritude!", advertiu.
Apesar do apagamento cultural e histórico imposto, "Seu Zé" faz parte das ruas e da cidade do Rio. "Ele é um um andarilho, porque o Pelintra conhece as esquinas da cidade, as rodas, as festa, a cabrocha. Então, esse mito do carioca, sabe, essa coisa do jeitinho carioca, isso tem muito a ver com o jeito de levar a vida do Zé Pelintra", argumentou Milton.
"Por ter morrido tão jovem, Zé Pelintra é uma entidade de muita força. Por isso que quando ele faz a sua incorporação nos terreiros, ele dança tanto, ele preserva tanto a vida que ele teve. Ele mantém a vida que tinha, a vida de um malandro", concluiu Luzia Lacerda.
História
As histórias sobre a origem de Zé Pelintra são muitas. Uma delas baseia-se na ideia de que José Pereira dos Anjos, nome verdadeiro da entidade, nasceu no sertão pernambucano, mas que devido à seca, ele e sua família foram obrigados a mudar para a capital, Recife.
Com a infelicidade da perda brusca e precoce de sua família, José viu-se obrigado a morar na rua, trabalhando como garoto de recados e dormindo em locais não muito agradáveis. Por isso, cresceu em meio ao ambiente noturno, jogatinas e a arte da sedução. Além disso, era muito habilidoso com facas, sabendo defender-se muito bem, tornando-o temido.
Ainda jovem, alguns contam, teria decidido mudar-se para o Rio de Janeiro, onde rapidamente ficou famoso nas áreas boêmias da região. Andava trajado com um terno branco, gravata vermelha, chapéu panamá e uma longa bengala.
Apesar de ser muito conhecido, José dos Anjos teve um destino trágico: foi assassinado com um golpe nas costas. Algumas pessoas contam que, no momento da sua morte, teria virado um espírito de luz. Hoje, Zé Pelintra é cultuado em algumas religiões de matriz africana, mas principalmente na Umbanda e no Catimbó. Ali, acreditam que a entidade trabalha em favor daqueles que são marginalizados pela sociedade.
*Estagiária Beatriz Coutinho, sob a supervisão de Thiago Antunes