Apaixonado por música, Davi quer coordenar um projeto social no ateliê que será inaugurado na Ilha do Governador Sandro Vox / Agência O Dia

No ateliê prestes a ser inaugurado na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio, o barulho típico da serra toma conta do ambiente. Entre a janela e a varanda abertas, a brisa do inverno refresca o segundo andar da casa, enquanto Davi Lopes mostra como é feito o corte das madeiras. Aos 52 anos, esse fluminense nascido e criado em Nova Iguaçu tem uma vida permeada por sons. Bombeiro e luthier, como é chamado o artesão dos instrumentos musicais, Davi entrelaça os dois ofícios em busca de harmonia, como nos acordes surgidos após o incêndio no Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no dia 2 de setembro de 2018.
Na sexta-feira, fará quatro anos que Davi ajudou a combater a enorme destruição, mesmo sem estar trabalhando naquela noite. “Corri para o quartel, coloquei o meu uniforme e fui ajudar. Eu já conhecia muito bem ali. O cenário era de guerra”, recorda.
As imagens de tristeza se juntaram a uma memória afetiva de longa data, no mesmo lugar. “Desde criança e adolescente, a gente ia para o Museu e ficava na Quinta da Boa Vista o dia todo. Eu era de Nova Iguaçu. Então, pegava o trem e íamos eu e os meus irmãos. O museu era o meu sonho. Quando eu entrei pela
primeira vez, pensei: ‘Vou ser historiador ou arqueólogo’. O museu, além de mostrar a história, estimula a parte cultural e da Ciência”, diz.
Davi aprendeu saxofone aos 10 anos e hoje também toca violão e flauta. Por outros caminhos da vida, ele encontrou uma nova maneira de resgatar a história. Desde 2006, quando estudou com o luthier Regis Bonilha, em São Paulo, ele passou a salvar a memória de muitos lugares, unindo a paixão pela música ao ofício de bombeiro, ao transformar em instrumentos as madeiras que restavam das chamas. “Nos incêndios, eu percebia que havia essas madeiras. Aí juntou todas as paixões: estava no Bombeiro, gostava das madeiras, era músico e ia aprender a fazer alguma coisa com elas”.
Assim, ele sonhou em fazer o mesmo no Museu Nacional. “Após o incêndio, saía do quartel e ia sempre ao museu com o meu violão para ver o que iria acontecer com as madeiras”.
De tanto aparecer por lá, Davi conseguiu apresentar sua proposta no museu e, com preciosos aliados, a sua ideia foi adiante. “Falei com o Vinícius Dônola, jornalista, que já havia feito uma matéria comigo.
E com o Paulinho Moska, que já tinha um instrumento meu”. Dali, surgiu a equipe do premiado documentário ‘Fênix — O voo de Davi’, parceria do Globoplay com a GloboNews, com direção
e roteiro de Dônola, Roberta Salomone e João Rocha, além de Flávio Lordello também como roteirista.
As filmagens mostram como Davi percebeu sons onde tudo era dor, vislumbrando em cada madeira um instrumento a ser construído. Uma arte acompanhada de vários trâmites. “Tinha que pegar a madeira e ter autorização porque é tudo patrimônio. Os violões que estão itinerantes são do Museu Nacional”, explica.
Uma nova maneira de voar
Com um dos seus violões mais antigos em mãos, datado de 2009, Davi Lopes resume a sua arte. “É do caos ao suave, do caos ao harmônico. Eu chamo isso de ressignificar”, diz ele. “A
madeira do primeiro instrumento que eu já havia feito para o Moska veio de uma
cama, de uma namoradeira. Ele até brincou: ‘Quantas pessoas já namoraram nesse móvel?’ São peças que têm história. Então, há um outro significado na história da própria madeira. Tem
pedaço de madeira que sei exatamente de onde tirei”.
Antes de ser bombeiro, Davi trabalhou na área administrativa da Vasp. “Foi outra paixão. Pensei: ‘vou ser piloto’”, conta ele, que chegou a fazer curso no Aeroclube de Nova Iguaçu. “Mas aí veio uma crise quando eu estava quase chegando a piloto comercial. E teve concurso para
os Bombeiros no finalzinho de 96 e eu passei”, conta ele.
Seus voos na vida, então, surgiram por outros caminhos: “Decidiram batizar o grupo do documentário de ‘Fênix’ porque a fênix é uma ave da mitologia que ressurge das cinzas, ela mesmo se refaz. Aí, quando veio o nome ‘Fênix — O voo de Davi’, eu
achei sensacional”.
Poesia, suor e 'tudo novo' marcam a trajetória
Com poesia e muito trabalho entre serras, lixas e demais equipamentos que permeiam o dia a dia de um luthier, Davi construiu instrumentos que chegaram às mãos de Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Paulinho Moska, Hamilton de Holanda, Nilze Carvalho e Felipe Prazeres. Foram três
violões, um cavaquinho, um bandolim e um violino.
De Gil, ele ouviu: “É você. A vida é em você, a sua encarnação, a sua alma, o seu destino nesse mundo...” As gravações do documentário são permeadas pela canção ‘Tudo novo de novo’, de
Paulinho Moska, que Davi escolheu para tocar na escadaria do museu para as pessoas que trabalham lá. “Voltar lá foi uma mistura de sentimentos, com alegria e a sensação do trabalho realizado”, diz.
A música virou a trilha do documentário e símbolo do renascimento: “Vamos acordar/ Hoje tem um sol diferente no céu/ Gargalhando no seu carrossel/Gritando nada é tão triste assim”. Nesse contínuo processo de renovação, Davi se dedica agora à inauguração do seu ateliê, prevista para setembro, onde sonha com um projeto social para ensinar música e o ofício de luthier. E, assim, ajudar a contar novas histórias.