Calçada musical de Vila Isabel, feita com pedras portuguesas, leva o desenho de partituras e nomes de ilustres músicos da história do bairroReginaldo Pimenta / Agência O Dia

Rio - O bairro de Vila Isabel, na Zona Norte, um dos mais tradicionais da cidade, completou 150 anos, nesta quarta-feira (28). Moradores e comerciantes da região se organizaram para realizar uma celebração especial de aniversário, com direito a bolo e parabéns, que acontecerá às 19h, no Boteco Petisco, localizado no Boulevard 28 de Setembro, na esquina com a rua Visconde de Abaeté. Apesar das comemorações, moradores reclamam da falta de segurança e da grande população de rua que habita o bairro e apelam para que os órgãos públicos tomem providências. 

A programação foi elaborada em conjunto pela Associação de Moradores e Empresários do Grajaú, Andaraí, Vila Isabel e Maracanã (VIGA) e pela Comissão de Moradores e Empresários de Vila Isabel. Mais cedo, às 11h, houve, na Praça Maracanã, uma ação pela valorização da vida, que ocorre todos os anos na data, com distribuição de bombons e folhetos informativos, organizada por moradores locais em prol do Setembro Amarelo.

Bairro que abrigou o primeiro zoológico brasileiro, onde hoje está localizado o Parque Recanto do Trovador e também o Colégio Estadual João Alfredo, primeiro a oferecer ensino profissionalizante no país, ao longo de sua história, a Vila se tornou um reduto do samba, berço de artistas de enorme importância cultural, e foi palco de diversas apresentações históricas nos bares e botecos espalhados pelo bairro, que se desenvolveu e virou um dos mais famosos e valorizados do Rio.
Uma de suas maiores características, além da boemia, é a paixão dos moradores pelo bairro. Gilberto Barbieri, de 75 anos, morador há mais de 50, contou sobre o amor que sente por Vila Isabel e falou sobre os problemas que o lugar enfrenta. "Sou nascido e criado aqui. Frequento o Petisco desde que foi inaugurado e não saio daqui da 28 de Setembro de jeito nenhum. A Vila sempre foi um bairro familiar, hoje que tá um pouquinho diferente, mas nada que tire o espírito daqui. Não saio daqui por nada. Hoje tem muito morador de rua e alguns deles incomodam. Alguns ficam assaltando de noite. Lá no meu prédio, já sofremos três assaltos. Aqui tem policiamento, o problema é que só fica até as 17h. Depois, os bandidos fazem a festa. Tinha que ter policiamento 24h", desabafou Barbieri.

Gaspar Costa, 76 anos, comerciante, que começou sua carreira em Vila Isabel, contou como o bairro o ajudou em sua trajetória e a falta que sentiu nas vezes em que se mudou. "Montei um comércio nos anos 70. Essa loja foi pioneira no ramo de moda jovem e chegou a ter até a Viviane Araújo como modelo. A partir dela, eu abri outras sete lojas pelo Rio. Tudo começou aqui para mim. Eu amo a Vila e tudo que ela me ajudou a conquistar. Eu sou português, vim para o Brasil com cinco anos e não consegui sair mais. Minha filha casou e se mudou para Portugal. Eu tentei ir morar com ela duas vezes mas não consegui, sinto muita falta da Vila, dos amigos, de tomar chope com eles e do calor daqui", detalhou Gaspar.

O empresário também reclamou da falta policiamento pelas ruas do bairro. "Aqui tá brabo, tá difícil, não tem policiamento, a Vila Isabel está jogada às traças. Antigamente você via até guarda de trânsito, hoje não tem patrulha, nada. Você só vê mendigo", disse.

A valorização do lugar, casa da escola de samba Unidos de Vila Isabel, e sua localização próxima a grandes pontos de circulação da cidade, não evitaram os problemas de urbanização que são enfrentados pela Vila nos dias atuais. Moradores se queixam do aumento da população de rua e da violência recorrente.
"Com certeza a violência urbana é o maior problema. Andar pelos lados de Vila Isabel, na parte da noite, é bem perigoso, porque não tem muito policiamento e é um bairro cercado de morros historicamente violentos. A 28 de Setembro é impraticável de noite, e é onde se concentra a maior parte do comércio e da vida noturna do bairro. Eu praticamente nem saio por ali. Todo o comércio fecha e a rua fica muito deserta, então é bom evitar. As ruas de dentro são muito residenciais então também é muito deserto, tem muito assalto", reclamou Maria Clara, 26 anos, que mora em Vila Isabel desde que nasceu e não se sente segura para andar pelo local à noite.

Mesmo com os problemas, Maria ressaltou a boa localização do bairro e reafirmou seu amor por ele. "Eu gosto muito da região em que moro. Para mim, que trabalho no Centro, tem bastante opção de transporte, apesar de hoje em dia estar caótico por causa da diminuição das frotas de ônibus depois da pandemia. Tem bastante comércio e temos o Shopping Iguatemi que é uma mão na roda também. Só sinto falta de mais opção de bares, a maioria se concentra na 28 de Setembro, que é uma rua perigosa à noite", contou.

Regina Maria Pontes, presidente da VIGA, afirmou que a associação trabalha levando as demandas dos moradores até os órgãos públicos e ressaltou a disposição da subprefeitura e do batalhão da localidade em tentar solucionar os problemas que acometem o bairro. "Parte do nosso trabalho é levar as demandas da população para as entidades responsáveis e eles estão sempre disponíveis para o diálogo, buscando atender a população. Eu enxergo a situação dos moradores de rua com tristeza, muitos foram abandonados, alguns são pacientes psiquiátricos que foram deixados pelas famílias e também há uma parcela de criminosos que vive nas ruas", afirmou ela.
"O 6º Batalhão é nosso maior aliado, estamos sempre conversando para atingir nosso objetivo que é melhorar a segurança na região. Atualmente requisitamos à polícia que estenda o horário de patrulhamento por aqui, para dar maior segurança aos moradores. Fazemos um trabalho de informar e conscientizar quem mora em Vila Isabel mais profundamente sobre essa questão da população de rua e temos um projeto de reciclagem, em que os moradores de rua realizam a coleta do lixo, dando uma oportunidade a eles e valorizando os que querem trabalhar ao invés de cometer delitos. As coisas são gradativas, aos poucos vamos conseguindo. Temos que focar nos resultados das políticas públicas", acrescentou.

História da Vila

Primeiro bairro planejado do Rio, a Vila Isabel, palco de muitas histórias da boemia carioca e do samba, surgiu após uma iniciativa do empresário João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, que, em 1871, adquiriu da Imperial Quinta do Macaco, uma propriedade da Imperatriz Dona Amélia, esposa de Dom Pedro I, as terras que viriam a se tornar o bairro.

Abolicionista declarado, o Barão se inspirou na luta contra a escravidão no Brasil para nomear o lugar e suas ruas. Desta forma, a Vila ganhou seu nome em homenagem a Princesa Isabel, responsável por assinar a Lei Áurea e sua principal avenida, o Boulevard 28 de Setembro, foi nomeado para homenagear a data de assinatura da Lei do Ventre Livre, que permitiu a filhos de escravos serem libertos.

Apesar das comemorações acontecem no dia 28 de setembro, o bairro de Vila Isabel foi oficialmente fundado em 3 de Janeiro de 1872, com suas vias e construções inspiradas na arquitetura da cidade de Paris, na França. O arquiteto contratado para o projeto geral foi Francisco Joaquim Béthencourt da Silva, discípulo de Grandjean de Montigny, um dos mais importantes profissionais da área à época.

No século XX, o lugar se tornou muito famoso por causa da sua música, literatura, arte, poesia e boemia, sendo a casa de muitos artistas consagrados como Antônio Nássara, Orestes Barbosa, Guilherme de Brito, Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, Martinho da Vila e muitos outros. Mas ninguém se destacou como Noel Rosa, o músico considerado o mais importante do bairro e um dos maiores compositores da música popular brasileira.

A musicista Analimar Ventapane, filha do compositor Martinho da Vila falou sobre a relação do samba com o lugar e como é sua vivência por lá. "Por ser filha do Martinho, recebo muito carinho na rua. Mas aqui é normal essa relação de família entre todos, todo dia você encontra gente que não sabe nem o nome, mas cria um vínculo por ver todo dia. Povo do samba, das bambas, faço um pedido para a gente continuar assim, cuidando um do outro, todos cuidando de todos, isso é o que temos de mais valor. Temos que cuidar da nossa casa e do nosso bairro, assim vamos cuidando da cidade. Vila Isabel é como qualquer bairro que enfrenta problemas na cidade. A cultura do samba é o nosso maior tesouro, nosso diferencial, e precisamos preservá-la junto também da nossa população. É um caminho para vencermos essas mazelas", contou Analimar.

Noel Rosa e suas paixões: O samba e Vila

Noel Rosa nasceu no dia 11 de dezembro 1910 na rua Teodora da Silva, 30, onde morou na sua vida inteira. A casa onde ele morou não existe mais e, no mesmo lugar, hoje o número 392, foi construído um prédio que leva o nome dele. O músico, que tinha comportamento tímido devido a uma deformidade no queixo, foi fundamental para a legitimação e popularização do samba de morro através de suas obras. Autodidata, Noel aprendeu a tocar bandolim de ouvido pelos bares da Vila Isabel e tomou gosto pela música. Em 1930, quando a canção popular começou a se firmar e o samba passou a se consolidar como parte da raiz musical brasileira, Noel ganhou destaque e preferência entre os ouvintes de rádio e participantes dos carnavais de rua do Rio de Janeiro. Sua música conquistou muitos admiradores pela autenticidade, ao falar de amor e os encontros e desencontros do cotidiano.

Após se formar no colégio São Bento, começou a estudar medicina, mas parou um ano depois. Sobre a decisão, ele disse que preferia "ser um bom sambista a ser um mau médico" e passou a se dedicar integralmente a música, sendo comum ver Noel pelos bares e cafés da época, sentado à mesa, compondo. Uma de suas maiores obras, a canção Feitiço da Vila se tornou o hino não oficial do bairro de Vila Isabel.
*Estagiário, sob supervisão de Thiago Antunes