Nuno24abrARTE KIKO

Uma prática corriqueira na administração pública brasileira expõe de forma clara a maneira peculiar com que o Estado brasileiro (no nível federal, estadual e municipal) trata a administração das próprias contas. O nome oficial da prática é “Restos a Pagar”. Entre os fornecedores, porém, ela é chamada por nomes bem menos inocentes do que esse.
Este ano, o Orçamento da União reservou um total de R$ 233 bilhões para o pagamento de despesas que, a rigor, deveriam ter sido pagas nos anos anteriores. O enredo dessa tragédia é conhecido. Ele começa quando algum órgão público de qualquer nível administrativo, devidamente autorizado pelos superiores e depois de seguir os trâmites legais, contrata uma obra qualquer.
O serviço pode ser a pavimentação de uma estrada, a construção de um prédio ou a reforma de um hospital, não importa. Também vale para a prestação de serviços a órgãos públicos, para a aquisição de medicamentos e para uma série de situações em que algum fornecedor privado fecha um contrato com algum órgão público. A contratação é perfeitamente legal e o serviço é prestado sob a vigilância dos órgãos de controle do Estado. Na hora de pagar pelo que contratou, no entanto, o rigor nunca é o mesmo.
O fornecedor executa e entrega o serviço, mas na hora de receber, precisa se virar para por a mão em seu dinheiro. Atrasos são frequentes não apenas no final, mas em todas as parcelas previstas em contrato. E, ainda que o contratante se dê o direito de cumprir sua parte, o contratado nunc pode sair da linha. Continua com a obrigação de pagar os salários, as tarifas públicas e, principalmente, os tributos que incidem sobre o valor do serviço prestado (e não sobre o valor recebido!). Pior: se não apresentar a Certidão Negativa de débitos fiscais e trabalhistas a cada vez que for que pleitear o pagamento do que lhe é devido, pode perder a esperança de ver a cor de seu dinheiro.
De um modo geral, o que deixou de ser pago num ano é empurrado para o exercício seguinte. Do valor contabilizado como Restos a Pagar no Orçamento da União, pouco mais de R$ 185 bilhões se referem a compromissos que deixaram de ser honrados em 2021 e ficaram para este ano. Os quase R$ 48 bilhões restantes, porém, referem-se a dívidas que vêm de exercícios anteriores.
Quem está habituado aos números superlativos do orçamento federal, que prevê um total de 4,7 trilhões em despesas para 2022, pode considerar os Restos a Pagar uma ninharia. Para as empresas que prestaram o serviço e o financiam utilizando recursos próprios, os atrasos frequentes podem levar à falência.

RESPONSABILIDADE FISCAL
A desculpa para atrasos desse tipo é a mesma, seja na esfera federal ou nas administrações estaduais e municipais. Se o pagamento fosse feito, o limite de gastos previstos para o exercício seria ultrapassado e poderia acarretar problemas para o gestor público — que responderia pela quebra do orçamento com base na Lei de Responsabilidade Fiscal. Até aí, tudo bem: nenhum administrador público pode gastar mais do que estava previsto e esse princípio é mais do que correto.
A pergunta é: se não havia dinheiro para pagar, por que o serviço foi contratado? Independente da resposta, o problema é que, para não descumprir uma norma que foi criada para que ande na linha, o poder público não pensa duas vezes antes de empurrar o problema para seus fornecedores.
As consequências disso, além das que pesam sobre a empresa, são mais do que conhecidas. Sabendo que demorarão a receber aquilo que lhes é devido, as empresas prestadoras de serviços ao poder público carregam na mão na hora de apresentar seus orçamentos. Serviços que poderiam ter custos 20%, 30% ou 40% menores caso houvesse a certeza do recebimento em dia acabam saindo por preços bem mais salgados. Quem paga por isso, claro, é o contribuinte que vê o dinheiro dos impostos que recolhe gerar muito menos benefícios do que poderia.

DEZ ANOS DE PRAZO
Por trás de cada obra pública paralisada no país, dessas que a toda hora são mostradas em reportagens indignadas na TV, existe algum valor que por um motivo qualquer deveria ter sido pago ao fornecedor — mas que ficou adormecido na contabilidade de alguma repartição pública. Alguns desses pagamentos, é claro, deixam de ser feitos por ação de algum órgão de fiscalização e controle.
Os fiscais desconfiam de alguma irregularidade e mandam parar o serviço e interromper os pagamentos até que tudo seja apurado. Não é disso que se trata o problema. A questão são os contratos regulares que não são pagos simplesmente porque faltou de dinheiro em caixa ou para evitar que o teto de gastos seja ultrapassado. A prática é tão usual que o poder público, em alguns casos, se dá ao direito de exagerar na adoção de normas que criam problemas para muita gente.
Veja, por exemplo, o que vem acontecendo na prefeitura do Rio de Janeiro. A lei complementar de nº 235, aprovada no ano passado, autorizou que a prefeitura dividisse os restos a pagar sobre obrigações vencidas entre os anos de 2017 e 2020 (ou seja, todo o período da administração anterior) em até dez anos. Por mais que essa norma ajude a manter as contas da prefeitura em dia, o mecanismo é, no mínimo, discutível.

SOLUÇÃO CRIATIVA
Um problema como esse pode ser resolvido sem que se firam direitos nem se desrespeite aquilo que foi combinado em contrato? A resposta é sim. Claro que sim. Incluída no bojo de uma proposta ampla, negociada e aprovada pelas instâncias devidas, poderia ser feita uma emissão de títulos públicos municipais no valor dos restos a pagar. O dinheiro dos títulos a serem emitidos seria utilizado para o pagamento integral das obrigações com os fornecedores privados. O resgate desses bônus seria feito ao longos dos mesmos dez anos previstos para o pagamento dos atrasados com recursos do orçamento.
Alguns poderão dizer que não haveria sentido em se aumentar a dívida pública para o pagamento de obrigações contraídas junto a prestadores privados de serviços. Ver o problema por esse ângulo é um erro: a dívida já existe. A única mudança que haveria com a adoção dessa nova modalidade seria o credor. O titular deixaria de ser a empresa prestadora do serviço e passaria a ser o instituição que adquiriu o título. Simples assim.
É claro que essa modalidade não está prevista em lei e precisa ser debatida e muito bem planejada para que a solução de agora não acabe gerando algum problema mais adiante (como, aliás, é hábito na administração pública brasileira). O que não se pode, porém, é decidir a questão de forma unilateral e impor de cima para baixo uma lei que deixa o credor numa situação difícil. Ou o aceita a condição imposta e espera que seu dinheiro pingue ano a ano em sua conta ou recorre à Justiça em busca de seus direitos.
Seja como for, a questão dos Restos a Pagar e do tratamento que se dá a eles é uma parte pequena de um problema muito mais amplo. O Brasil precisa com urgência encontrar uma maneira de encarar o dinheiro público e passar a utilizá-lo em benefício do conjunto da população — e não apenas da manutenção da própria máquina. Por qualquer ângulo que se observe, é inconcebível saber que mais de 90% do orçamento da União, dos estados e dos municípios são gastos com as chamadas despesas obrigatórias (que, de um modo geral dizem respeito aos salários e ao custeio do serviço público) — ficando menos de 10% para os investimentos necessários em saúde, educação e infraestrutura.
Um artigo recente do professor Modesto Carvalhosa, publicado em diversos veículos do Brasil, estima em certa de R$ 50 bilhões de reais uso de recursos do orçamento em benefício dos parlamentares brasileiros. Esse dinheiro inclui os R$ 26 bilhões das emendas parlamentares, os R$ 16,5 bilhões das chamadas emendas do relator, ou emendas secretas, o R$ 4,9 bilhões do Fundo Eleitoral e os R$ 2,6 bi do fundo partidário. É muito dinheiro.
Isso significa o seguinte: por menos que o Estado brasileiro tenha recursos para manter em dia as obrigações que assume com seus fornecedores (e que, a rigor, só deveriam ser assumidas se a capacidade de pagamento estivesse assegurada) e por mais que a maior parte do bolo orçamentário já esteja carimbada e destinada às despesas obrigatórias, os políticos sempre arrumam uma maneira de tomar para si uma parte cada vez maior do minguado orçamento público. O problema já está identificado e seria bom se fosse encarado de frente. Quanto mais demorar, mais o entulho fiscal que vem se acumulando nos últimos anos ficará pesado.