Por mais diferentes que pareçam, os dois líderes das pesquisas eleitorais se igualam num ponto: ambos parecem ser a favor de uma máquina de estado pesada
Líder de todas as pesquisas eleitorais feitas até o momento, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, tem dado declarações que, à primeira vista, não fazem justiça ao prestígio que ele construiu como um dos políticos mais habilidosos que o Brasil já conheceu. A roupa do candidato “paz e amor”, que vestiu em sua campanha vitoriosa de 2002, parece ter ficado esquecida na disputa deste ano. O político agregador que cativou o eleitorado com a disposição de governar para todos dá a impressão de ter saído de cena. O que se vê este ano é um candidato muito parecido com o que perdeu três eleições presidenciais consecutivas (1989, 1994 e 1998) com um discurso que parecia pouco interessado em agradar aos que não pensavam como ele.
Na quinta-feira passada, a Comissão de Direitos Humanos da ONU julgou uma representação apresentada em 2016 e concluiu que as sentenças contra Lula, que o ex-juiz Sérgio Moro proferiu nos processos da Operação Lava-Jato, foram parciais. Em sua primeira manifestação pública sobe o assunto, Lula disse que “o ideal seria se pudesse tirar o Bolsonaro e me colocar para presidir o país”. Lula fez a declaração num encontro da Rede Sustentabilidade e a plateia de aliados gostou do que ouviu.
Muita gente riu da declaração. Lula, claro, não mencionou, nem seria conveniente mencionar, que a maioria dos eleitores (57,8 milhões, para ser mais exato) que foram às urnas em 2018 para eleger Bolsonaro demonstrava tanta ojeriza ao PT que, se ele tivesse sido candidato no lugar de Fernando Haddad, talvez tivesse uma surpresa desagradável. O desgaste do partido tinha atingido um nível tão elevado que nem o prestígio pessoal de Lula e nem o fato dele ser o presidente no período de maior expansão que a economia brasileira viveu recentemente (o que é um fato acima de qualquer argumento), parecia capaz de reverter a situação.
A reação do ex-presidente à posição da ONU em relação a seu caso é justificável e é mais do que legítimo que ele queira tirar proveito dela. O mesmo, porém, não se aplica a outras de suas declarações recentes. No dia 5 de abril, por exemplo, Lula tocou num tema que é um tabu forte o suficiente para abalar o apelo que seu nome exerce junto às classes C e D — ou seja, as mais vulneráveis da pirâmide social.
Ao dizer, como fez dias atrás, que “todos deveriam ter direito ao aborto”, Lula pode ter agradado à banda mais ideológica de seus correligionários. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu desagradar os evangélicos e os católicos conservadores. Depois, quis recuar e tentou explicar que quis, na verdade, dizer que o Estado é responsável por acolher a mulher que sofre um aborto. O tema é tão delicado que lideranças religiosas que já votaram em Bolsonaro e já não se sentem tão à vontade ao lado do presidente demonstram dificuldades para se aproximar de Lula depois dessa declaração. Quando o ex-presidente quis recuar já era tarde — o estrago já estava feito.
QUEDA DE BRAÇOS
A despeito da delicadeza do tema, essa declaração não teria dado tanto o que falar se tivesse saído da boca de qualquer outro candidato. Tudo o que Lula fala vira notícia — e ele sabe perfeitamente disso. Por sua experiência e habilidade política, portanto, é pouco provável que ele tenha cometido um deslize ao tocar nesse assunto: o que ele quis dizer foi exatamente o que ele disse. A sensação que fica é a de que essa, como outras declarações que tem dado para agradar seus militantes “raiz”, é parte da estratégia que ele definiu para sua candidatura.
Lula parece ter percebido que, a despeito da torcida de alguns analistas, sua força não é suficiente para formar uma maioria capaz de elegê-lo no primeiro turno. Sendo assim, dá mostras de que pretende atiçar a chama que aquece o coração petista de seus eleitores cativos, que somam um contingente suficiente para assegurar sua passagem para o segundo turno. Quando isso acontecer, ele então entrará numa queda de braços com um outro candidato que, pelos números atuais, deverá ser o presidente Jair Bolsonaro.
Pelo lado de Bolsonaro, as pistas deixadas até aqui indicam uma estratégia muito parecida. O presidente fala para seu eleitorado cativo e parece apostar que, na hora agá, quando apenas ele e Lula restarem na raia, o mesmo antipetismo que lhe deu a vitória em 2018 volte a se manifestar com força suficiente para reconduzi-lo ao Planalto. Para garantir que seu eleitorado se mantenha com os ânimos eriçados ele faz gestos ousados como, por exemplo, o de conceder indulto ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), condenado pelo Supremo Tribunal Federal por ter ultrapassado todos os limites da liberdade de expressão ao fazer ameaças sérias aos ministros da casa.
A verdade é que, neste momento da campanha, nem Bolsonaro nem Lula parecem fazer a menor questão de se mostrar simpáticos aos que não integram suas legiões de aliados mais fiéis. A ideia dos dois parece ser a de apostar na polarização no primeiro turno e deixar a decisão para o momento em que o eleitor que não é simpático nem a um nem ao outro será obrigado a decidir qual deles considera o mais preparado para governar o Brasil. Em outras palavras, a ideia parece ser a de conquistar o poder mais por obra e graça da taxa de rejeição do outro do que pelas próprias qualidades.
Tudo indica que, pelo menos por enquanto e assim como ocorreu em 2018, o debate eleitoral se manterá no nível da superfície, sem se aprofundar em questões que deveriam estar no centro da discussão. Mas há um detalhe a ser observado: pelas medições mais recentes, a rejeição a Lula alcança 43% do eleitorado, enquanto 54% dos eleitores afirmam que jamais votariam em Bolsonaro.
Até o momento, não surgiu alguém capaz de se valer desses números para se viabilizar como o terceiro nome de peso na disputa. Caso isso venha a acontecer, a culpa será justamente das frestas abertas pela estratégica pouco agregadora mostrada até aqui pelos líderes da corrida. Bolsonaro e Lula deveriam saber que, como diz um velho ditado português, “não se apanham moscas com vinagre, mas com mel”. Ou seja: a acidez de agora pode espantar de vez o eleitorado e criar um cenário que, no final das contas, seja prejudicial aos dois.
ESTADO INCHADO
A essa altura do campeonato, são mais do que conhecidas as diferenças entre Lula e Bolsonaro. Se quiséssemos, ficaríamos aqui por mais de duas horas mencionando as diferenças que separam a visão esquerdista que Lula tem do mundo do olhar direitista de Bolsonaro. Insistir nesse ponto é chover no molhado. Mais interessante, a essa altura, é observar que os dois se aproximam num ponto essencial: ambos parecem concordar com o tamanho que a máquina pública ganhou no Brasil.
A rigor, tanto Lula quanto Bolsonaro não demonstram preocupação, por exemplo, com fato de orçamento da União, independente da necessidade de cortar gastos, sempre ficar mais inchado ao sabor da expansão das despesas obrigatórias — que crescem de acordo com a inflação quando o certo seria que acompanhassem a expansão do PIB.
No ano passado, para citar apenas um exemplo, o PIB cresceu 4,6% e o IPCA, o principal índice da inflação brasileira, ficou pouco acima de 10%. O desequilíbrio que isso causa é enorme e a consequência é que as despesas obrigatórias, que já consomem mais de 95% de todas as receitas federais, estão cada vez maiores e o dinheiro que resta para investimentos essenciais em saúde, educação e infraestrutura está cada vez mais minguado. No ritmo atual, logo chegará o momento em que toda a arrecadação federal irá para os gastos obrigatórios e não restará nas para investimentos como os do programa Minha Casa, Minha Vida, que foi uma marca do sucesso petista.
Será que isso não está nem de Lula nem de Bolsonaro? Um e outro talvez devessem usar a força política que ambos demonstram para liderar uma discussão séria em torno o tema. Nenhum dos dois, por exemplo, discute o mecanismo que faz com que os salários dos servidores públicos (sobretudo os das categorias mais privilegiadas e bem pagas) suba automaticamente, independente da arrecadação ter aumentado ou diminuído. Por mais que Bolsonaro tenha vestido a casaca de privatista na campanha de 2018, o fato é que a desestatização pouco avançou e o Estado brasileiro, na prática, mantém a mesma silhueta robusta que tinha nas mãos de seus antecessores.
Esse ponto é essencial. Governar é muito mais do que traçar as linhas políticas para o relacionamento com a sociedade. É, mais do que isso, organizar o Estado para que ele consiga cumprir suas funções. Nenhum candidato pode mais fechar os olhos para o fato de que o Brasil gasta muito mais recursos com a manutenção da máquina estatal do que com as políticas públicas que beneficiariam a toda sociedade. Esse tema terá que ser tratado com seriedade pelo próximo governante.
A desigualdade social precisa ser combatida com investimentos em educação e com a geração de empregos — e para isso acontecer é preciso ter dinheiro para investir. Pelo bem da própria democracia e da consolidação institucional do país, o ideal seria que ele fosse tratado como prioridade e debatido com clareza a fim que que o eleitor pudesse formar seu juízo antes de ir às urnas.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.