Peço licença ao leitor para utilizar este espaço, criado para discutir soluções para os problemas fluminenses e cariocas, para tratar de um tema que, à primeira vista, parece mais próximo da Avenida Paulista do que do Calçadão de Copacabana. Mas que, mesmo assim, combina perfeitamente com o espírito e com os valores sempre defendidos aqui. Entre esses valores, estão o respeito às regras do jogo e à aceitação por todos das decisões tomadas pela maioria. O assunto de hoje é a saída do ex-governador de São Paulo, João Doria, da corrida presidencial deste ano.
Sem a intenção de entrar na especulações sobre os possíveis efeitos da confusão sobre o quadro eleitoral e sem discutir se Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, lucra com ela mais do que Jair Bolsonaro, do PL, ou vice-versa, é hora de parar e pensar nas circunstâncias que cercaram a desistência de Doria. O gesto é muito mais significativo do que parece e suas raízes, mais profundas do que sugerem os palpites a respeito de seus efeitos imediatos sobre o cenário eleitoral.
É preciso levar em conta, antes de falar do que interessa, que Doria não entrou na disputa sob chancela de uma legenda nanica nem tampouco era um candidato sem um lastro eleitoral que sustentasse suas pretensões presidenciais — como era o caso, por exemplo, do ex-juiz Sérgio Moro. Pelo contrário. Vitorioso na disputa da prefeitura de São Paulo em 2016 e na eleição para o governo do estado de maior densidade eleitoral do país em 2018, o ex-governador entrou na raia como um nome viável, que disputaria o pleito por um dos maiores partidos do país.
Sim. O PSDB é uma potência quando comparado com a maioria dos outros 31 partidos credenciados para disputar as próximas eleições. Nas oito eleições diretas que houve no Brasil desde a redemocratização, só ficou fora da briga em duas: na primeira, em 1989, e na mais recente, em 2018. Nas outras seis, esteve entre os favoritos da corrida. Em duas delas, 1994 e 1998, elegeu o presidente da República no primeiro turno. Em quatro chegou ao segundo turno sendo que em 2014 foi derrotado por uma margem mínima de votos. Em todos esses momentos, sempre havia um nome credenciado a participar da eleição como o “candidato natural” da legenda.

A SOLUÇÃO E O PROBLEMA
Desta vez, o cenário se mostrou diferente. Sem alguém capaz de se impor como candidato, os tucanos recorreram a um mecanismo já consagrado em outros países como a forma mais democrática de se resolver esse tipo de questão: as prévias partidárias. O que parecia uma bela solução acabou se transformando num problema monumental.
Doria foi escolhido por 53,99% dos filiados do PSDB que se dispuseram a votar nas prévias partidárias realizadas em 26 de novembro do ano passado. A despeito de todo barulho que houve em torno do método de escolha e da quantidade de aplausos que a atitude dos tucanos recebeu na época, o processo acabou tendo a utilidade de um par de patins de gelo no meio da caatinga nordestina. Ou seja, nenhuma.
Pelo que o próprio ex-candidato declarou em seu discurso de renúncia, a desistência se justificou pelo fato dele não ter sido aceito pelos manda-chuva do partido. “Hoje, neste 23 de maio, serenamente, entendo que não sou a escolha da cúpula do PSDB. Aceito esta realidade de cabeça erguida”, disse. Se é assim, de cima para baixo, que as decisões são tomadas num partido grande, estruturado em todo o país e de grande visibilidade, como é o PSDB, é de se imaginar o que acontece no interior das legendas nanicas que compõem o complexo universo eleitoral brasileiro.
A verdade incômoda é que não se pode falar em democracia representativa de qualidade sem partidos sólidos e estruturados. Da mesma forma, não existem partidos sólidos e estruturados sem que a democracia interna seja respeitada. Para que isso aconteça, o respeito às regras é fundamental — mas não foi isso que foi demonstrado diante do tratamento que a candidatura de Doria recebeu do PSDB. Ao invés de trabalharem juntos para viabilizar a candidatura do aliado, os caciques derrotados se deixaram levar por ressentimentos e pela mesquinharia dos interesses contrariados. O que se viu, então, foi um movimento de cima para baixo destinado a inviabilizar o cumprimento da decisão que havia sido tomada de baixo para cima.

CONVENIÊNCIA X COERÊNCIA
Este espaço tem defendido com insistência que a política brasileira só produzirá efeitos positivos para a sociedade no dia em que as decisões tomadas de baixo para cima tiverem mais peso do que as conveniências que se movem na direção contrária. Ou seja, de cima para baixo.
O conceito, no princípio, valia apenas para a solução dos problemas econômicos e sociais do Rio de Janeiro. Mas ele pode, perfeitamente, ser estendido ao país inteiro. Mesmo porque, quando se trata de política partidária (o ponto de partida de qualquer atividade política), as cúpulas das legendas têm se movido mais ao sabor das próprias conveniências do que ao rigor da coerência. Isso não é novo! O que aconteceu com o ex-governador foi apenas a confirmação de uma prática recorrente no país.
O que difere o caso de Doria de movimentos parecidos que houve ao longo da história política brasileira é que, agora, o ex-governador pôs fim à campanha natimorta antes que abertura das urnas escancarasse a traição dos aliados. Outros não tiveram a atitude de jogar a toalha e preferiram esperar pela contagem dos votos para se certificar de que os que fingiam estar a seu lado não estavam dispostos a mover uma palha para levá-los à presidência.
O caso mais clássico é o do mineiro Cristiano Machado, nas eleições de 1950. Lançado candidato pelo velho PSD, foi apunhalado nas costas pelos correligionários, que apoiaram o favorito Getúlio Vargas do PTB. Nas eleições de 1989, as primeiras depois de praticamente três décadas sem escolha direta para a Presidência da República, Ulysses Guimarães, do PMDB, e Aureliano Chaves, do PFL, foram desprezados pelas cúpulas de seus partidos — que preferiram desde o início cerrar fileiras ao lado do favorito Fernando Collor. Nas eleições passadas, foi nítido o movimento do próprio PSDB, que preferiu abandonar o candidato Geraldo Alckmin à própria sorte para apoiar o favorito Jair Bolsonaro.

LANTERNA NA MÃO
Alguns analistas dizem que Doria, agora, está apenas provando do veneno que usou nas eleições passadas, quando abandonou Alckmin e se ligou a Bolsonaro sem qualquer cerimônia. Se foi assim, isso apenas confirma o que foi dito aqui. Movimentos como esses dizem mais a respeito dos partidos do que dos candidatos. E remetem a outro ponto importante na atualidade política brasileira — o das regras frouxas que regem a formação e o funcionamento dos partidos políticos.
O mesmo sistema político eleitoral que expeliu João Doria da disputa e que, agora, procura de lanterna na mão um nome para representar a tal terceira via nas eleições de outubro também abriga candidaturas lançadas por legendas e baixa capacidade de atração de votos e alta capacidade de captação financeira. Com as facilidades de acesso aos cofres públicos que os próprios parlamentares criaram para as legendas que os abrigam, o que não falta no Brasil são representantes de si mesmos sem qualquer aderência com a sociedade dispostos a se lançar a aventuras eleitorais apenas porque contam com o dinheiro do povo para pagar a conta. Eleição após eleição, eles põem suas candidaturas na rua e voltam a apresentar ao eleitor a mesma proposta que tinha sido apresentada e ignorada quatro em quatro anos.
Aqueles que praticam esse jogo de cartas marcadas não têm o direito de, depois, virem se queixar de que o povo dá sinais cada vez mais claros de cansaço e de desânimo com os partidos e seus candidatos. A política brasileira precisa se voltar para o povo e respeitar as decisões que ele toma. E para que isso aconteça é preciso que os políticos comecem dar exemplos de honestidade e de respeito às regras que eles mesmos criam.