É preciso enfrentar de baixo para cima os problemas que nenhuma solução de cima para baixo foi capaz de resolver. Isso vale para tudo, até para os aeroportos
Uma história pouco conhecida no mundo da aviação diz que em 2007, durante os estudos para a implantação de suas rotas nacionais, a equipe do empresário David Neeleman, o controlador da Azul Linhas Aéreas, pretendia fazer do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, o centro de suas operações no Brasil. A ideia era aproveitar a localização estratégica do aeroporto e explorar a capacidade de atração que o Rio exercia sobre os brasileiros dos outros estados e sobre os estrangeiros que visitam o país.
A cidade e o estado, na época, viviam uma fase de euforia e de otimismo. O Brasil tinha acabado de ser escolhido como sede da Copa do Mundo de Futebol, que aconteceria em 2014. E o Rio, que era apontado como favorito para receber os jogos Olímpicos de 2016, o que acabou se confirmando, seria a cidade que mais se beneficiaria dos investimentos que o país receberia. Os executivos da Azul procuraram as autoridades do estado e do município para tratar do assunto. As negociações, porém, acabaram não evoluindo como a companhia desejava.
No final das contas, e para encurtar a história, o apoio governamental que a Azul pleiteava foi prometido à TAM — que na época ainda não havia se fundido com a chilena LAN para formar a Latam. A empresa de Neeleman foi, então, em busca de outro centro para suas operações e o encontrou no aeroporto de Viracopos, na cidade paulista de Campinas. No final, a Latam desistiu de apostar nas operações no Rio e fez de Brasília seu principal hub nacional fora de São Paulo.
Essa não foi a única oportunidade perdida. No ano anterior, 2006, a Gol já havia estudado a situação e concluído que implantar um Centro de Operações novinho em folha no aeroporto de Confins, próximo a Belo Horizonte, seria mais conveniente e mais barato do que aproveitar as estrutura que a Varig tinha no Santos Dumont e no Galeão. De acordo com relatos de pessoas que participaram daquelas negociações, as autoridades da época criaram mais obstáculos do que facilidades para a implantação dos projetos no estado. Isso foi o que mais pesou para que as companhias fossem procurar abrigo em pontos do mapa que, embora parecessem menos atrativos do que o Rio, ofereceram facilidades operacionais que ajudaram a viabilizar os empreendimentos.
OPORTUNIDADES PERDIDAS — Vistos com os olhos de hoje, esses casos acabam ajudando a entender o motivo pelo qual os aeroportos do Rio de Janeiro, que já foram os mais movimentados do país, acabaram perdendo espaço e se tornando — cada qual por seus motivos — o reflexo da perda de prestígio da cidade e do estado no cenário nacional. As vantagens competitivas que faziam da cidade a primeira opção para qualquer empresa aérea que quisesse operar no país foram desaparecendo até o Rio, pouco a pouco, deixar de ser o coração e o cérebro da aviação comercial brasileira.
A pergunta é: onde se pretende chegar com a lembrança desses fatos? A resposta é simples. Parte dos problemas que tiraram dos aeroportos do Rio o destaque que um dia tiveram se deve a oportunidades que se perderam porque as autoridades queriam cobrar das interessadas o preço que a operação dos aeroportos cariocas valia no passado — e não do que passou a valer depois que o estado viu sua Economia perder o fôlego ao mesmo tempo em que cresciam os casos de corrupção e de violência.
Quem olha hoje para a situação do Galeão, que parece entregue às moscas, e mesmo do movimentado Santos Dumont, se depara com um conjunto de problemas que exigirão concentração, organização e visão de futuro para serem resolvidos. Ter consciência disso e tomar as providências necessárias para enfrentar a situação deve ser visto como parte do esforço a ser feito para devolver ao Rio a relevância perdida. Mãos à obra!
Antes de ir adiante, um alerta. A solução de que necessitamos não deve ser procurada com os olhos voltados para o passado e sim para futuro! Já passou da hora de pararmos de culpar a transferência da capital federal para Brasília, há mais de 60 anos, por todos os nossos problemas. Também é preciso cuidar para que as feridas abertas pela fusão da antiga Guanabara com o antigo Estado do Rio, que aconteceu em 1975, cicatrizem de uma vez por todas e deixem de incomodar.
Essas situações de fato existiram e custaram caro ao Rio. Mas enquanto ficarmos nos queixando delas, à espera de uma compensação pelas perdas do passado, corremos o risco de deixar outras oportunidades como as que já estiveram em nossas mãos escorrerem entre nossos dedos. Se deixarmos passar outras chances por não entender que o mundo de hoje é mais competitivo do que era nos nossos anos dourados estaremos nos condenando a um futuro que será ainda mais difícil do que o presente. Vamos, portanto, trabalhar para explorar as vantagens que temos e transformar em oportunidades os problemas que se acumularam nos últimos anos.
ÁGIO DE 290% — O Galeão, que já foi a principal porta de entrada do país, aos poucos perdeu relevância em razão de um conjunto tão extenso de problemas que seria difícil mencionar todos neste espaço. Levado a leilão pelo governo em 2013, o aeroporto foi arrematado pela Odebrecht por R$ 19 bilhões — quando o valor fixado no edital do leilão era de R$ 4,8 bilhões. Esse ágio de 290%, que parecia ser a prova do vigor do aeroporto, logo acabou se transformando em seu maior problema.
Sem querer levantar qualquer suspeita além das que já foram levantadas em torno desse negócio, ficou evidente desde o início que o valor oferecido estava muito acima daquilo que o aeroporto valia. A situação, que já nasceu complicada, tornou-se insustentável depois que a Odebrecht se viu envolvida pelo tsunami causado pela Operação Lava-Jato. Sem condições de levar o negócio adiante, a Odebrecht saiu de cena e, em 2017, transferiu o contrato para a Changi Airport.
Operadora do aeroporto de Cingapura, a Changi também pediu para sair. Em fevereiro passado, devolveu à Infraero a concessão que deveria durar até 2043. A justificativa foi a impossibilidade de cumprir diante da queda de movimento causada pela pandemia da covid-19, as condições prometidas em 2013. Com uma receita anual de R$ 900 milhões, o aeroporto tem uma margem de R$ 400 milhões — valor insuficiente para pagar o R$ 1,2 bilhão da taxa anual de outorga prometida no leilão.
No caso do Santos Dumont, a situação é diferente. Mesmo tendo visto o número de passageiros parar no tempo, o aeroporto continua viável e lucrativo. A ideia do governo era inclui-lo na 7ª rodada de leilões, que deve acontecer nas próximas semanas e pretendia transferir para a iniciativa privada outros 15 aeroportos brasileiros. Pelo projeto inicial, ele seria a cabeça de um bloco que incluiria outros três aeroportos — nas cidades de Uberlândia, Uberaba e Montes Claros, todas no interior de Minas Gerais. Houve pressão para que a ideia não fosse adiante e o mais provável, agora, é que o Santos Dumont e o Galeão formem um só bloco e sejam lavados juntos a leilão.
Isso, claro, é uma vantagem e torna o negócio bem mais atrativo. Mas não basta para resolver o problema. É preciso levar essa discussão adiante de forma rápida, porém mais racional do que se viu nas outras vezes em que o tema foi tratado. Todo debate em torno do assunto tem se concentrado nas vantagens que parecem transformar o Galeão e o Santos Dumont em objetos de desejo de qualquer operador aeroportuário do mundo. É preciso levar em conta, ao contrário, tudo que é preciso ser feito para que o empreendimento se torne mais atrativo para o vencedor do leilão. E a solução para o problema não está só na capital, mas espalhada por todo o estado.
DE BAIXO PARA CIMA — O Rio de Janeiro está prestes a viver uma situação que, bem administrada, poderá deixar para trás os problemas atuais e abrir as portas para um novo tempo. A nova política de distribuição de royalties do petróleo, por exemplo, está prestes a tornar superavitários uma série de municípios do interior e do litoral do estado. Se esse recurso novo for utilizado para criar uma infraestrutura que favoreça a indústria, os empreendimentos em energia limpa e o turismo, além de proporcionar ao cidadão a segurança que tornou-se escassa em determinadas regiões do estado, pode estar sendo implantada a base de uma situação que gerará mais e mais negócios, atrairá mais e mais turistas e criará mais e mais empregos em todo o estado.
O que isso tem a ver com os aeroportos? Tudo. Sem que se ofereçam atrativos aos turistas e sem medidas que estimulem as viagens de negócios, as pessoas de outros estados e outros países não terão motivos para visitar o Rio. Esses atrativos, naturalmente, não estarão apenas na capital — mas também no polo de óleo e gás da Região Norte do estado, nas praias paradisíacas do Sul, no alto da Mantiqueira e em todo estado. Se os prefeitos das cidades menores elaborarem planos estratégicos para que os royalties que passarão a entrar em seus cofres não se percam com políticas populistas e ajudem a dinamizar suas economias, poderemos estar diante do início da solução de nossos problemas. E, assim, conseguiremos enfrentar de baixo para cima um problema que nenhuma medida tomada de cima para baixo conseguiu resolver até hoje.
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no Twitter e no Instagram: @nuno_vccls)
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.