Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA.Daniel Castelo Branco

A dose anual da vacina contra a Influenza, foi a desculpa que consegui para sair da caverna. Máscara, chaveiro com frasquinho cheio de álcool gel 70º, e a lista de compras. Resolvi caminhar até ao Engenho de
Dentro, para chegar ao Posto de Saúde.
Caminhando e assobiando uma canção, encontrando vizinhos e desconhecidos, cumprimentando a todos, com o sorriso oculto, passei ao largo da Clínica da Família, evitei a rua da UPA do bairro, cheguei até ao Bar do Feio e, mais adiante, a Chave de Ouro (a padaria que deu nome ao local, faliu. Acredito que, com a pandemia, o comércio não resistiu à crise).
Na esquina das ruas Dias da Cruz e Adolfo Bergamini, desfilavam pequenas escolas de samba, blocos e foliões e o então o irreverente e famoso Bloco da Quarta-Feira de Cinzas. Claro, com a polícia atrás - às vezes, na frente - mas o mais esperado desfile por todos os moradores da região. Isso, amigas e amigos, nos anos 1960 e 1970. Perdido nas lembranças, o grito me trouxe ao presente: "Ô Luar, tá perdido?"

Marcelo Victor, Bob Victor para os íntimos, amigo e vizinho de bairro, companheiro de profissão, quase boêmio militante, não perde o hábito de ler os jornais, diariamente, ali, nas imediações da velha e agora
extinta padaria. Encontro que me trouxe mais recordações. Bob, quando fumante, não esquecia de levar um cinzeiro portátil para guardar as pontas de cigarros que consumia. Jamais jogava no chão o lixo que produzia. O cara sempre foi organizado.
O Fred admira o hábito inteligente e higiênico do Bob. E ele não falha nos costumes matinais: compra os jornais, caminha de volta ao Bar do Feio e se acomoda para ler as notícias. Bem, como sempre quando nos encontramos, o Flamengo não falta conversa. Mas, como bom vascaíno que sou, mudo de assunto. Então, falamos da vida, dos amigos que já se foram e, claro, dos que ainda estão por aqui. O papo sobre a guerra, a inflação, custo de vida, sempre está na pauta.

Caramba, rapidamente foi juntando amigos. Uns oito! É, vai ser difícil Bob ler os jornais. Já estava quase batendo em retirada estratégica. Fiquei com receio de acabar esquecendo da vacina. Mas, eis que, sem aviso, deu-se o silêncio. Eu estava sentado, de costas para a rua e não entendi nada. Mas, logo Ibiapina apontou, discretamente, com os olhos, a jovem que se aproximava pela calçada.
Foi tudo no automático: todos olharam na direção. A jovem, trajando aquela roupa colante, usada em academias, desfilava flutuando em nossa direção. Minutos passaram emoldurados pelo sorriso da mulher. Ela
parecia um carro alegórico, onde os destaques jogam beijinhos à multidão. Ninguém falou nada. Eu, na posição incômoda, já estava com o pescoço doendo.
A aparição passou em câmera lenta e o silêncio continuou. Logo que a mulher dobrou a esquina, Bob avisou: "Não se espantem. Ela é estrela pornô. Essa vizinha resolveu entrar na política. Ela quer tentar eleição para deputada federal..."

Pronto. Assunto pra mais de metro... Pedi licença aos amigos, pisquei para Bob, devolvi a xícara do café ao balcão e saí de fininho, à francesa. Caminhei em direção ao Posto de Saúde para encarar a minha vacina. E, somente no regresso, ainda caminhando, vi que o grupo dos amigos ainda permanecia no bar. Bob já havia se retirado. Passei ao largo, pensando na inevitável a gozação dos vizinhos: "Foi atrás da boazuda?", parecia até coro, em uma única voz, bem ensaiado. Sorri, sem responder, e voltei à caverna, com a mente livre
para pensar na alíquota do Imposto de Renda.
Céus, precisava fazer uma compressa no local da picada da agulha. Ih, quase esqueci de comprar pão e o milho picado para os pássaros. Tá na hora de voltar ao refúgio da caverna com wifi...