Cláudio Gama, diretor do Instituto MapearDivulgação

Mestre em sociologia e antropologia, Cláudio Gama começou a trabalhar com pesquisas de opinião e mercado em 1989. Em entrevista a O DIA, ele fala sobre as mudanças na sociedade percebidas por meio da experiência de anos lidando com pesquisas qualitativas, e como isso se refletiu não só no resultado das urnas de 2018 e 2022, como também nos movimentos que pararam as estradas do país. "Existe um ponto chave na comunicação: o surgimento da 'ideologia de gênero'. Observamos que a esquerda transmitiu para a população que a política de gênero era excludente dos valores 'tradicionais' — em vez de inclusiva dos valores não normativos", pontua.
O DIA: Na sua visão, como ocorreu o processo de acirramento político que vemos hoje?
CLÁUDIO: Isso começa com um erro de comunicação de quando a esquerda estava no poder. Obviamente foi um processo, mas existe um ponto chave na comunicação: o surgimento da "ideologia de gênero". A esquerda transmitiu para a população que a política de gênero era excludente dos valores "tradicionais" — em vez de inclusiva dos valores não normativos. Até perto do fim da era Dilma, o que víamos nos grupos de pesquisa qualitativa era uma tendência à aceitação da orientação não hétero: o que a maioria dizia era "toda família tem um parente que não é heterossexual. Não vamos deixar de amá-lo por causa disso", ou seja, uma via de inclusão. O ícone dessa virada foi a suposta "cartilha de sexo para crianças". Foi aí que se permeou a ideia de que o PT queria não só sexualizar as crianças precocemente, como ainda induzir uma orientação não hétero.
Essa discussão passa pelos campos da direita e da esquerda?
Há muitos anos temos essa visão de que brasileiro vota em pessoas, não em partidos. Ou seja, em 2022, votaram no Bolsonaro e no Lula, e não no PL e no PT. A ideologia partidária não passava pela percepção da população. Quando a esquerda comete esse erro de comunicação e a direita se apropria disso, os valores ditos "tradicionais" viram uma ideologia partidária, ainda que calcada em determinadas pessoas.
Como o discurso migrou da "ideologia de gênero" para outros assuntos?
A esquerda nunca defendeu acabar com os valores da família tradicional. No entanto, ao não desfazer claramente essa má interpretação — até por receio de ser taxada de preconceituosa — deu-se margem a esse entendimento. Por causa dessa brecha, outros assuntos entraram em pauta, como drogas, aborto e religião, sempre reforçando a ideia de que haveria um lado do espectro político favorável a desagregar as famílias. Também há uma distorção da noção de direitos humanos, como se a luta por sua garantia fosse a defesa de bandidos — o que também leva à percepção de haver um lado contrário à polícia.
Como o senhor vê as manifestações da última semana?
Estamos vivendo uma realidade muito complexa, com várias explicações sobre o que nos fez chegar a este ponto. Mas precisaremos de mais tempo para analisar se o que está acontecendo está mais relacionado a extremismo de fato ou meramente um pânico social. Muitos dos que estão nas ruas vivem um desespero por sentirem que suas famílias estão ameaçadas.
E como restabelecer um diálogo que ultrapasse esse pânico?
Há esclarecimentos que são necessários, como o da questão de gênero — e ao retornar ao poder, a esquerda não vai se livrar disso. É necessário buscar um discurso mais simples e mais compreensível. Um caminho interessante que já desponta é o da retomada de símbolos nacionais, que foram apropriados pela outra ponta do espectro político. Vemos agora um esforço para explicitar que o verde e o amarelo são de todos os brasileiros.
Qual será o papel dos institutos de pesquisa daqui para a frente?
Não acredito que foi um erro o que ocorreu no primeiro turno. Foi um crescimento repentino do Bolsonaro de última hora entre eleitores que, na verdade, estavam indecisos e foram atingidos por uma comunicação eficiente. Em pesquisas qualitativas, percebemos uma grande volatilidade: o entrevistado manifestava preferência por um candidato, mas em poucos minutos, mudava o voto. Para o futuro, precisamos de um investimento para entender essa nova lógica.
Você pode gostar
Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.