Portaria do Condomínio Dolce Vita, no bairro Areal, em Araruama Reprodução
O episódio, conhecido como "Farra do Minha Casa, Minha Vida", foi apresentado na Câmara Municipal e, além da denúncia protocolada no MPF, é alvo de uma ação popular.
Hoje em dia, mães, que vivem com seus filhos - alguns deles, com necessidades especiais - em condições precárias lutam na Justiça para reaver o direito que lhes foram tomados.
Eliana Monteiro Nazaré, conhecida como Nana, tem 49 anos e mora no bairro de Itatiquara em uma quitinete de três cômodos com o marido e o filho único. Francisco, o Netinho, tem 28 anos, foi diagnosticado no espectro autista e sofre de paralisia cerebral frontal e lateral.
Nas palavras da mãe, em tom de brincadeira, Netinho "só fala, canta, dança e faz pirraça".
Eliana fez o cadastro para receber uma unidade no Minha Casa, Minha Vida há mais de seis anos, ainda no governo do ex-prefeito Miguel Jeovani. A ficha da mulher foi preenchida na secretaria de Política Social (Sepol), no Centro de Araruama, e enviada à época para a Caixa Econômica Federal, em Niterói.
Nana contou à reportagem que ia toda semana a Sepol buscar por atualizações sobre a situação dela. Chegando lá, era recebida sempre com a mesma resposta: "não saiu ainda, não".
Após a mudança de governo, com a eleição de Lívia, Eliana voltou a verificar na Sepol sobre o caso, quando foi informada que não havia sido selecionada.
Alguns anos depois, através da irmã, Nana teve acesso a denúncia da vereadora Penha Bernardes (PL) e constatou que seu nome estava na lista emitida pela Caixa Econômica Federal.
O local humilde onde Eliana vive atualmente, em uma rua com postes sem energia elétrica, é uma herança do pai, que morreu em meio a esse período.
"[Quero] o apartamento ou indenização referente ao valor do apartamento. Ter uma casa própria é o sonho que todo mundo tem. No seu nome, tudo direitinho", afirmou Eliana
A jovem Graziele dos Santos Sousa, de 28 anos, tem duas filhas. Ana Clara, de 10, e a Heloísa, de 4.
A filha de quatro anos tem bronquite e, por isso, Graziele precisou fazer alguns reparos na casinha em que mora, como a colocação de pisos, comprados de segunda mão com avarias e a instalação de uma janela que conseguiu através de doação.
"[Quero] ter meu cantinho para mim, para meus filhos. A gente nunca sabe o dia de amanhã. Eu paguei muito tempo de aluguel e agora estou aqui", disse Graziele.
A jornada de Graziele no Minha Casa, Minha Vida, já completou a primeira década. Ela contou à reportagem que fez a entrevista quando a filha mais velha ainda era bebê, em 2011, no CRAS do Mutirão.
Na época, ela foi informada pela Sepol que ainda não havia apartamento disponível e o governo ainda estava em busca de terrenos para construir os condomínios do programa em Araruama.
Ao longo dos anos, Graziele continuou sua peregrinação e ia, religiosamente, verificar o andamento de sua inscrição junto à Sepol. Ela alega ter sofrido com o "jogo de empurra" entre Prefeitura e Caixa Econômica Federal.
"A Prefeitura joga a gente como peteca, joga pra lá, pra cá, como se a gente não fosse nada", lamentou a mulher.
Outra mulher que teria sido vítima dessa preterição foi Patrícia Pereira da Silva Ferreira, de 39 anos e mãe de quatro filhos. Morando em uma casinha própria, o banheiro dela caiu durante uma forte chuva que atingiu a cidade há alguns meses.
Patrícia procurou a Sepol e recebeu, por três meses, um aluguel social da Prefeitura. Com o corte do benefício, ela voltou à secretaria e pediu auxílio para reconstruir o banheiro de sua casa.
A Prefeitura prometeu o material. Mas, na quarta passada, quando foi na Sepol, que passou por uma troca de comando recentemente, uma assistente social teria falado à Patrícia que tinha que procurar o antigo titular da pasta, José Domingues Eurico, o Zezinho, atual secretário de de Ambiente, Agricultura, Abastecimento e Pesca.
Em off, um funcionário teria falado que a mudança de postura da Prefeitura se deu após a divulgação de um vídeo nas redes sociais (disponível abaixo) mostrando a situação calamitosa vivida por Patrícia.
Ação Popular
A reportagem teve acesso a ação popular de 144 páginas com um relatório completo sobre toda a situação. O documento coloca como réus a prefeita, outras duas pessoas, o município de Araruama e a Caixa Econômica Federal.
Os contemplados pelo programa suspeitos de irregularidades foram separados no documento em 36 categorias.
Estão relacionados na lista funcionários e parentes da prefeita de Araruama, Lívia Soares Bello da Silva, de ex-secretário da Sepol e vereador na época, cabos eleitorais e funcionários públicos do município.
Pelo menos, 107 dos 288 apartamentos do condomínio Dolce Vita teriam sido entregues para esse tipo de indicação.
Segundo a relação, Maurício Melo, ex-vereador e ex-titular da SEPOL, por exemplo, fez cinco indicações. Entre elas, sua ex-mulher e duas filhas, sendo uma de criação.
Carlos Alberto Siqueira da Silva, o Russo, vereador da base de Lívia, que está no 3º mandato e é pré-candidato a deputado federal também está relacionado na lista, com nove contemplados que teria indicado.
Outro vereador com mandato atualmente, José Magno Martins, o Magno Dheco, foi citado no documento como responsável por uma indicação.
Já o então secretário de Ambiente, Agricultura, Abastecimento e Pesca, Cláudio Barreto, que passou a responder pela secretaria de Obras neste ano, teria indicado o sogro, pai da atualmente vereadora Roberta Barreto que é empresário, para ser o proprietário de uma das unidades do conjunto habitacional popular.
O que dizem os citados
A Prefeitura de Araruama foi questionada pela reportagem sobre as indicações que teriam sido feitas diretamente pela prefeita, pela mudança na lista de contemplados, pelo tratamento dado na Sepol à população e pela situação específica ocorrida com Patrícia.
Ignorando parte do questionamento, o município classificou as informações como “invencionices” por parte de “quem inadvertidamente usou da Justiça como meio político para denegrir a imagem da governante maior”.
Segundo a Prefeitura, “a seleção dos beneficiados pelo programa Minha casa Minha Vida é promovida exclusivamente pela Caixa Econômica Federal, a quem compete verificar se o pretendente preenche ou não os requisitos estabelecidos para o programa”.
O município complementa que “tudo [foi] realizado de acordo com o Programa Nacional de Habilitação Urbana, seguindo as regras do Sistema Nacional de Cadastro Habitacional”.
“De outro lado, imperioso salientar também que pelo fato da matéria estar sendo apreciada pelo judiciário, a quem foi fornecido todas as justificativas e explicações e as quais serão analisadas, não compete ao município tecer maiores comentários”, concluiu a nota da Prefeitura.
A Caixa Econômica Federal foi procurada para comentar a polêmica e a resposta da Prefeitura, mas não tivemos retorno até o momento.
Apontado como responsável por uma indicação para o programa habitacional, o parlamentar Magno Dheco foi procurado para se posicionar por um aplicativo de mensagens, mas disse que apenas daria um posicionamento pessoalmente.
O secretário de Obras de Araruama e ex-titular da pasta de Ambiente, Agricultura, Abastecimento e Pesca, Cláudio Barreto, afirmou que não indicou ninguém para o programa.
A reportagem procurou, pelas redes sociais, o ex-secretário de Política Social de Araruama Maurício Melo e o vereador Russo, mas não tivemos resposta.
Procuramos também a advogada responsável pela Ação Popular movida pelas vítimas da suposta fraude, Dra Karina Afonso, para saber o encaminhamento da ação na Justiça.
“Ajuizamos a ação instruída com um forte dossiê e pedimos a exibição de outros documentos, especialmente que estão de posse da Caixa Econômica”, afirmou.
“Alguns réus já apresentaram suas defesas. Estamos conduzindo com muito cuidado, cientes também da atuação zelosa e rigorosa da Procuradoria da República”, concluiu.
Sobre a ação protocolada no Ministério Público Federal (MPF), o procurador da República de São Pedro da Aldeia, Dr. Leandro Mitidieri Figueiredo, disse que não tinha “nada a informar sobre essa questão no momento”.
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