Rio - Um castigo dado pela mãe após tirar notas baixas no colégio de freiras em que estudava levou Nelcy da Silva Morais, de 48 anos, direto para a ala das baianas, há 33 anos. “Você vai sair de baiana”, decretou a mãe, sem imaginar que um dia a filha seria diretora da ala. Assim começou a sua relação com a Mangueira, apesar do DNA não negar sua origem Verde e Rosa: Ela é neta de Dona Neuma e seu bisavô, Saturnino Gonçalves, foi um dos fundadores da Estação Primeira e primeiro presidente da escola, que busca o bicampeonato este ano com o enredo “Só com a ajuda do Santo”.

“Eu tinha 15 anos e foi o melhor castigo que eu tive na vida. Fiquei muito tonta, não estava acostumada. Tive medo de cair, fazer vergonha, mas fui, segurei. Agora, meu amor, eu só saio daqui para o Caju”, diz, se referindo ao cemitério da Região Portuária do Rio. A estreia é marcante por diversos motivos: foi o primeiro desfile no Sambódromo da Praça Onze, em 1984, e a Mangueira saiu campeã, levando ainda o inédito título do supercampeonato.
Naquele ano, a disputa foi dividida em duas, com a Portela vencendo no domingo e a Verde e Rosa na segunda-feira. Já a conquista que só os mangueirenses podem bater no peito e dizer que tem foi disputada no dia em que hoje é realizado o desfile das campeãs, entre as três melhores do domingo e as outras três de segunda-feira, além das duas primeiras colocadas do que atualmente é a Série A.
“Naquele ano a Mangueira foi e voltou duas vezes”, conta, cantarolando os versos “É no balancê-balancê, eu quero ver balançar, é no balanço que a Mangueira vai passar”, do enredo “Yes, nós temos Braguinha”. O tal do foi e voltou dito por Nelcy revela outro acontecimento peculiar do desfile, quando os integrantes deram meia-volta após chegar na Praça da Apoteose e voltaram pela Avenida até o local da concentração.
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Nelcy está em sua segunda passagem como diretora da ala das baianas, contabilizando 23 anos à frente das nem tão “senhoras baianas”. A mais nova a desfilar com a Mangueira na madrugada da próxima terça-feira vai fazer 16 anos em abril. ”Era baianinha, agora vem comigo.”
“Na minha época só podiam sair pessoas idosas, e eu fui a primeira baiana mais nova a sair na Mangueira. Com isso, outras pessoas novas tiveram oportunidade de desfilar na ala, inclusive em outras escolas”, diz, revelando que a mais velha a desfilar de fato tem 78 anos. “A baiana mais velha hoje não desfila, vem na frente de nossa ala e é presidente de honra, a Tia Suluca, que tem mais de 80 (88 anos). É irmã do tio Delegado (lendário mestre-sala, que morreu em 2012 aos 90 anos)”, conta.
Uma preocupação de Nelcy é o peso da roupa das baianas, muitas com idade avançada. “Eu brigo muito por isso, são pessoas de idade para carregar peso. Bota a fantasia e vai rodar lá na Avenida pra você ver como é bom? É calor, as vezes chove e o peso dobra, fica mais pesada”, defende, revelando que também dá os seus pitacos na confecção da roupa.
Segundo a diretora, a ala, que faz 57 anos este ano, vai surpreender. “Nossa fantasia está muito bonita. Vocês vão ter uma grande surpresa. Infelizmente não posso falar muito, senão meu presidente e meu carnavalesco brigam comigo, mas podem aguardar que a ala das baianas vai dar um show”, promete Nelcy, defendendo a importância das suas “meninas”. “A bateria é o coração da escola e as baianas tradicionais são as mães do samba.”
Para quem acha que as baianas estão somente de passagem na Avenida, se engana. Nelcy decide após observar nos ensaios delas, na Rua Visconde de Niterói, como será o papel de cada uma durante o desfile. Sem passo marcado, coreografia, todas à vontade, mas com muita organização.

“Durante os ensaios vemos aquelas que podem ficar nos lados, no meio, frente, costas. As minhas senhoras de idade, que não estão rodopiando tanto, mas que não podem ficar de fora e têm muita importância na ala, eu vou mesclando, coloco mais no meio. Ponho na frente aquelas que ‘vem quebrando tudo’, atrás também, laterais aquelas que podem segurar”, revela.
Mesmo respeitando as outras escolas, ela confia no bicampeonato da Mangueira. “Nos aguardem porque a gente vem para levar o título. A Mangueira está preparada para o bi sim. Todas as co-irmãs também estão correndo atrás e vão fazer um belo desfile, mas a gente não vem para brincar”, avisa.
Vó Neuma: Ensinamentos para a vida
Nelcy mora na Mangueira, a poucos metros da quadra da escola, uma extensão de sua casa e do bar do qual é dona. Além de coordenar a ala, ela faz parte do conselho da escola, ajuda na preparação da comida durante festas, feijoadas e reúne mensalmente suas baianas. Com a sua avó, Dona Neuma, que também fez de tudo na agremiação, recebeu ensinamentos para toda a vida.
“A minha avó me ensinou que a Mangueira era o quintal da nossa casa. Todo mundo lá em casa é Mangueirense, tem uma história. Sinto muita falta dela. Sou a primeira neta, era o xodó dela”, lembra, emocionada, dizendo que a primeira vez que assumiu a ala das baianas, Dona Neuma ainda era viva e ficou muito orgulhosa.
A casa cheia, com muita comida na panela, o respeito pelos mangueirenses de longa data e a relação de família com outros moradores da comunidade também é herança da avó.
“Aqui todo mundo é chamado de tio, você toma benção aos mais velhos. E eu dou essa criação para as minhas três filhas e cinco netas. Minha vó criou praticamente o Morro de Mangueira todo. A casa dela era a única que tinha telefone, televisão, então os pais saíam para trabalhar e deixavam os filhos lá. Então sempre foi panelada de comida. Isso eu herdei dela, né? Casa cheia, panelada de comida. Aqui todo mundo é padrinho, comadre, afilhado, todo mundo é família”, diz, orgulhosa. Coisas de Mangueira.
Reportagem de Adriano Araújo, Gabriela Mattos e da estagiária Luana Benedito