Guapimirim – O sonho de muitos adolescentes é um dia ser jogadores de futebol. Sonham em ser como Neymar, Ronaldinho, Romário, Bebeto, Pelé e outros grandes craques. Sonham em ser celebridades e também com uma vida financeira melhor para si e para seus familiares. Mas, nem só de fama e dinheiro vive um atleta.
Dos atletas que chegarem ao futebol profissional, nem todos terão salários astronômicos, nem todos jogarão em grandes times nem serão garotos-propaganda de marcas famosas ou estarão rodeados de mulheres. O sol não nasce para todos, e quando nasce o brilho não é igual.
O caminho para ser um jogador de futebol é longo, árduo e cheio de ‘peneiras’, traves, tropeços, gols contra e adversários. A triste realidade, a menos pior, é que muitos sequer conseguirão chegar ao futebol profissional. Uns por não atraírem a atenção dos “olheiros” e não terem grande evolução nos times de base, outros por não poderem contar com o apoio financeiro – para custear passagens e lanches – dos familiares para os treinos e terem de desistir dos sonhos para ajudar no sustento da casa. Ou joga bola ou morre de fome.
Para outros tantos jovens, há, ainda, uma realidade pior e que pode transformar os sonhos em pesadelos. Muitos podem ser vítimas de tráfico de pessoas tanto no Brasil quanto no exterior. Podem ser vítimas de trabalho escravo, de exploração sexual ou até mesmo de tráfico de órgãos, por exemplo. É contra esses perigos potenciais que os adolescentes precisam ser protegidos, e essa tutela cabe aos pais ou ao responsável legal, é o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/1990. Os riscos não devem ser subestimados, e não se deve pensar que é esperto demais e que isso só acontece com os outros.
Em 2014, por exemplo, um grupo de 38 adolescentes de periferias do Maceió (AL) foi enganado por um falso empresário esportivo, com a promessa de apresentá-los para testes em grandes clubes. Após 50 dias, eles foram resgatados numa chácara em Guapimirim, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, após denúncia anônima. Eles viveram em péssimas condições, dormindo em colchões amontoados. Todos utilizavam o mesmo banheiro e eram responsáveis pela limpeza do local. Os familiares dos meninos chegaram a pagar R$ 550 cada para cobrir os custos da viagem. O acusado era um ex-candidato a deputado estadual pelo Alagoas, identificado como Alan Nunes Silva.
Em julho de 2021, um homem foi preso pela segunda vez em Xerém, no município fluminense de Duque de Caxias, por suspeita de aliciar adolescentes com a promessa de treinamento para grandes times cariocas. Foram resgatados 17 jovens do Amazonas e do Pará. Os parentes dos garotos chegaram a pagar de R$ 400 a R$ 500 para custear a estadia e o suposto treino. O acusado foi identificado como Jorge dos Santos. Em dezembro de 2020, ele chegou a ser preso por crime de cárcere privado de 13 adolescentes do Amazonas, Pará e Paraíba. Ficou preso por seis meses e pouco mais de um mês livre cometeu novamente o mesmo delito.
Note-se que ambos os delitos têm características similares: falsas promessas de contatos em grandes clubes; iludir adolescentes de comunidades carentes – cujos pais não conhecem legislações e direitos – e levá-los para outros estados, mantendo-os longe do contato de parentes e amigos e em condições subumanas e/ou análogas à escravidão. Além disso, nenhum desses sonhadores é apresentado aos grandes clubes para os prometidos testes. Muitos desses adolescentes sequer continuam estudando quando migram para outras regiões. Um dos focos desse tipo de estelionatários e isolá-los do convívio social de vizinhos nas novas localidades para não despertar atenção. Os documentos das vítimas são apreendidos e os contatos com familiares são controlados pelos criminosos.
Nos casos mostrados nesta reportagem, a ‘sorte’ das vítimas é que elas não saíram do Brasil. O desfecho poderia ter sido muito pior se estivessem no exterior, onde se fala um idioma diferente, as legislações são outras e onde o contato com familiares fica muito mais difícil.
Cuidados que devem ser tomados para não cair nesse tipo de golpe
Para evitar cair nesse tipo de golpe, é fundamental estar alerta. Para isso, existe a cartilha ‘Na Rede Certa: Direitos e Prevenção ao Tráfico de Adolescentes no Futebol’. O material narra uma estória de dois adolescentes que sonhavam ser jogadores profissionais, e um deles foi vítima de tráfico internacional de pessoas junto à mãe. O documento traz uma série de vocábulos e expressões utilizadas no futebol, legislações e orientações sobre como se precaver, denunciar e pedir ajuda em caso de violação.
A cartilha está em sua terceira edição e foi divulgado em maio deste ano, durante as celebração do Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, comemorado em 18 de maio, e também em celebração aos 31 anos da Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas (ONU), a qual o Brasil é signatário.
‘Na Rede Certa’ foi produzida pelo Projeto Trama, um consórcio de enfrentamento ao tráfico de pessoas encabeçado pela organização de direitos humanos Projeto Legal, no Rio de Janeiro. Essa recente edição conta com o apoio da Associação de Ex-Conselheiros e Conselheiros da Infância (Aecci). O documento é endossado pelo presidente do Comitê dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), Luis Pedernera, e pela coordenadora nacional da Coordinfância, Ana Maria Villa Real Ferreira Ramos, do Ministério Público do Trabalho (MPT).
“O futebol constitui na modernidade uma das maiores formas de mobilização social, inclusive para crianças e adolescentes. Não podemos permitir que esta participação social infanto-juvenil se torne um espaço de violações de direitos, especialmente quanto ao direito à educação, à convivência familiar e comunitária, integridade física e psíquica. É preciso e necessário adotarmos medidas de empoderamento das crianças e adolescentes e seus familiares, e a cartilha ‘Na Rede Certa’ cumpre essa função”, comentou, em entrevista ao O Dia, o advogado Carlos Nicodemos, do Projeto Legal, um dos responsáveis pela cartilha. Ele é especialista em direitos da criança e do adolescente, ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e ex-presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (Cedca-RJ).
“O futebol ocupa ou deveria ocupar diversas dimensões na vida de uma criança, principalmente na realidade histórica e cultural brasileira. A infância brasileira está muito relacionada à prática do futebol, daí, as possibilidades para desenvolver o futebol para além das quatro linhas do campo são inúmeras. Infelizmente, o futebol de alto rendimento ainda é um grande, se não, o maior objetivo, quando se fala na realidade do futebol brasileiro. E tendo esse foco único, porque nem sempre é possível que ele aconteça, podem ocorrer diversas outras possíveis violações ou reais violações, porque se vislumbra a possibilidade de mudança social, de alteração na sua estrutura econômica através da prática de futebol de alto rendimento. Deixa-se de lado a garantia de outros direitos, tendo como consequência a possível a violação de outros direitos, em nome de um objetivo maior. Isso é muito problemático, porque a própria estrutura do futebol, dos grandes clubes ou das escolinhas não percebe que está diretamente vinculada ao futebol a garantia do direito à integridade física e psíquica de adolescentes. É importante que todos aqueles que estão envolvidos no mundo do futebol, sejam eles profissionais de clubes ou de escolinhas de futebol, tenham conhecimento sobre o sistema de garantia de direitos e entendam o seu papel social para a prática”, comentou à reportagem a pedagoga Monica Alkmim, uma das responsáveis pela cartilha. Ela é coordenadora executiva do Projeto Legal, também coordenadora nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
É extremamente importante checar no site da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) se o tal empresário está credenciado, ou seja, se tem licença para o exercício profissional. Contratos de trabalho não têm validade jurídica em língua estrangeira se não houver tradução juramentada. Denúncias de tráfico de menores no futebol e em outros esportes podem ser feitas ao Conselho Tutelar, à Polícia Federal, ao Disque 100 – vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos –, ao Ministério Público do Trabalho (MPT), ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, bem como a algumas organizações de direitos humanos que atuam na proteção de crianças e adolescentes.
A cartilha ‘Na Rede Certa’ pode ser baixada gratuitamente neste link: https://bit.ly/3BOpgA8
Tráfico de pessoas
O tráfico de pessoas é um crime previsto na Lei nº 13.344/2016 e também uma violação de direitos humanos. Os motivos são diversos e podem incluir adoção ilegal. Pode trazer sérias consequências psíquicas e econômicas ou até mesmo levar as vítimas ao óbito.
De 2000 a 2013, foram registrados 1.758 casos de tráfico nacional e/ou internacional de pessoas no Brasil, de acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública. Os números podem ser ainda maiores, tendo em vista que nem todos os casos são denunciados. As denúncias são recebidas por diversos órgãos.
Dados do Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas – com análise de casos registrados entre 2017 e 2020 – revelam que 72% das vítimas no Brasil eram pessoas negras. Das possíveis vítimas desse tipo de delito atendidas no Sistema Único de Saúde (SUS), 37,2% seriam crianças. O documento foi produzido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública em parceria com o Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (Unodc, na sigla em inglês).
Ainda, segundo o referido relatório, entre 2017 e 2020, 77% das vítimas foram traficadas para a prostituição, 14% para trabalho escravo e 9% para outros tipos de exploração.
Além de negros, as principais vítimas de tráfico de pessoas podem ser mulheres, crianças e também refugiados.
De modo geral, aliciadores e traficantes de pessoas buscam conquistar a confiança das vítimas e de seus familiares com falsas promessas de ascensão social. Elas só conhecem o real caráter desses criminosos depois de caírem no golpe e estarem vulneráveis e sem terem como se defender e/ou pedir socorro.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.