O CPRJ tem 42 anos, está situado na sede Guapimirim do Parque Estadual dos Três PicosFoto: Fabiano Veneza - Inea

Guapimirim – A vacina usada em seres humanos contra a febre amarela está ajudando a evitar a mortandade de espécies primatas. Em Guapimirim, na Baixada Fluminense, o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ) já imunizou pelo menos 100 micos-leões-dourados. E todos estão sadios. O imunizante é fabricado pela Bio-Manguinhos, ligada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A iniciativa faz parte de um experimento que começou em 2017, mediante autorização dos órgãos competentes, após um surto de febre amarela, em 2016, que vitimou várias espécies de primatas. Estima-se que desde então, as populações de micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) que habitavam as matas fluminenses registraram perdas de 30%. Já as populações de bugios (Alouatta spp.), de saguis-da-serra (Callithrix flaviceps) e de sauás (Callicebus nigrifrons) tiveram uma redução de 80%.
De 2014 a 2019, o Ministério da Saúde contabilizou 23 mil óbitos de macacos por suspeita de febre amarela, inclusive em espécies ameaçadas de extinção. Os dados constam num estudo divulgado na revista eletrônica ‘American Journal of Primatology’, em outubro passado, o qual foi compilado pela Pesquisa FAPESP.
Um dos desafios dos cientistas era definir a dose ideal para cada espécie de macaco. Num estudo publicado no portal ‘Journal of Medical Primatology’, em fevereiro do ano passado, a aplicação de dose fracionada de um quinto à aplicada em seres humanos mostrou o mesmo resultado efetivo em primatas.
O experimento foi definido pelo CPRJ e contou com a participação de especialistas da Fiocruz e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), entre outras instituições de pesquisa e de proteção aos animais, por exemplo. A previsão era vacinar 150 micos-leões-dourados, mas contemplou 120 deles, os quais viviam soltos nas proximidades da Reserva Biológica de Poço das Antas, nos municípios fluminenses de Silva Jardim e Casimiro de Abreu. Numa coleta de sangue em 50 deles, 47 produziram anticorpos contra a doença.
Ainda segundo a Pesquisa FAPESP, o CPRJ imunizou 44 micos-leões-de-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), 19 micos-leões-dourados (Leontopithecus rosalia) e micos-leões-pretos (L. chrysopygus ), além de 11 bugios (Alouatta clamitans, A. discolor e A. caraya).
Os trabalhos para salvar as espécies e contribuir para o repovoamento enfrentam outros desafios: um deles se trata da captura dos animais que vivem em matas, principalmente os bugios, que habitam as partes mais altas árvores; o outro é que os filhotes não nascem com os anticorpos dos pais imunizados.
Para falar sobre o assunto, O Dia entrevistou Alcides Pissinatti, primatólogo e chefe do CPRJ:
O Dia: Quantos animais já foram vacinados?
Alcides Pissinatti: “Nós já trabalhamos para desenvolver essa vacina com pelo menos 50 animais. Elas estão sendo utilizadas, atualmente, na vacinação de micos-leões-dourados que estão na natureza, onde já vacinamos pelo menos 100 animais. É um processo que procuramos fazer em animais quando em cativeiro, na natureza, quando for possível capturar um ou outro animal. Não há um programa, exceto esse de Poço das Antas com micos-leões, de um processo de vacinação com animais, há uma série de questões envolvidas nisso”.
O Dia: Quantos óbitos foram evitados por meio desta vacinação?
Alcides Pissinatti: “Os animais que foram vacinados evidentemente estão todos sadios e não têm problema nenhum, então são óbitos evitados. Para calcular melhor, teríamos que ter um surto e uma campanha de vacinação maciça, o que não é possível. Como que você vai pegar um animal na natureza? A partir daí, seria possível avaliar melhor a mortandade dos animais e dar uma resposta em cima do quantitativo de animais vacinados”.
O Dia: A vacina humana age da mesma forma no organismo dos primatas? Os resultados estão sendo observados?
Alcides Pissinatti: “A vacina age da mesma forma que no organismo humano, porque você está aplicando em primatas humanos e não-humanos. São organismos muito parecidos, então não há problema nenhum em fazer isso. Essa vacina foi primeiramente preparada para humanos, e depois fizemos a adaptação dela para a questão do primata, onde tivemos que trabalhar com doses fracionadas. Houve experimentação, diversos tipos de experimentos para que se chegasse a uma concentração de vírus que podemos injetar no organismo e estimular a resposta de defesa frente ao vírus da febre amarela. Estamos sempre acompanhando tudo, não paramos, não vamos vacinar e virar as costas, tem sempre o acompanhamento do dia a dia dos animais que foram vacinados para ver o que acontece com eles”.
O Dia: Poderia fazer uma fala sobre a sua opinião a respeito desta vacinação? Qual a importância?
Alcides: “Doenças não tão graves estão causando mortandades em humanos e, principalmente, em animais. A principal importância é evitar que essas doenças se manifestem amplamente, não só em animais, mas, principalmente, em humanos. A finalidade é essa. Como o primata é, digamos assim, o reservatório do vírus, e o mosquito vai lá, pica o animal, e do animal ele vem e pica o humano e transmite o vírus da doença, então é extremamente importante que a gente faça isso. Então, animais imunizados deixam de fazer este papel e, consequentemente, contribuem para o controle dessa doença e de qualquer outro tipo de doença que cause isso que nós chamamos de doença zoonótica, que tanto causa doenças em animais como também nos humanos”.
Sobre o CPRJ
O Centro de Primatologia do Rio de Janeiro (CPRJ) é uma referência em todo o país em pesquisa e preservação de primatas. É a primeira instituição no Brasil com foco prioritário na preservação de primatas nativos brasileiros.
O CPRJ tem 42 anos, está situado na sede Guapimirim do Parque Estadual dos Três Picos (PETP) e é administrado pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea).
O CPRJ promove estudos em áreas como: desenvolvimento de vacina contra febre amarela para primatas neotropicais, investigação de casos de malária autóctones na Mata Atlântica fluminense, coronavírus (Sars-CoV2) em primatas neotropicais e o potencial de transmissão do espumavírus em humanos. Os espumavírus são um tipo de retrovírus que causam imunodeficiência em algumas espécies de macacos.
O CPRJ possui um banco genético. São mantidos em cativeiro cerca de 250 primatas de 30 espécies – ademais de alguns híbridos – com a finalidade de reprodução e recuperação das populações nativas.
Imunização de primatas em outras partes do país
O Centro de Pesquisas Biológicas de Indaial (Cebespi), em Santa Catarina, pretende imunizar 44 bugios-ruivos a partir deste fevereiro de ano, por meio do Projeto Bugios, de acordo com a Pesquisa FAPESP. A diferença em relação ao experimento no Poço das Antas, mencionado nesta reportagem, é que os animais estão em cativeiro.
Em 2021, 137 macacos morreram infectados por febre amarela no estado catarinense. Ademais, oito pessoas tiveram a doença, sendo que três delas faleceram. Nenhuma tinha se vacinado, conforme registros da Secretaria de Estado de Saúde.
No primeiro semestre de 2022, também está prevista a vacinação de 34 bugios-ruivos mantidos no Centro de Manejo e Conservação de Animais Silvestres (CeMaCAS), no Parque Anhanguera, em São Paulo, seguindo os protocolos estabelecidos pelo CPRJ e pela Fiocruz. A imunização ficará a cargo da Divisão da Fauna Silvestre (DFS) – vinculada à Prefeitura de São Paulo –, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) e da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen).