Gabriel Chalita, colunista do DIA
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
As folhas de abril já se foram. Inclusive, algumas das árvores que vejo enquanto escrevo. Caem uma a uma. As folhas do calendário, inventado por mente humana, também. Abril não esperou mais do que o esperado. E se foi. Encerrei abril, fazendo aniversário. Acordei, antes do dia, e cambaleei tateando lembranças.

É de minha mãe que mais sinto falta. No abril passado, ela era presente. Dei, em pedaços, um bolo grande que ganhei. De uma cama de hospital, ela sorriu inteira. E contou, com a voz já ensaiando despedidas, os lindos abris que vivemos juntos.

Juntos lembramos de meu pai que, há muito, já não nos abraçava nos nossos aniversários, a não ser dentro de nós, nos aconchegos da lembrança. Enfermeiras ouviam em atenção. Um filho alimentando sua mãe que o alimentou sem pausas, em todo o seu existir. E se foi abril. E permaneceu a consciência de que, em nenhum outro abril, eu teria a minha mãe como tive antes.

As folhas caem e forram os chãos da memória. O vento leva para longe quem amamos. As raízes permanecem. O cordão umbilical que une terra e firmeza não se desfaz. A seiva de amor percorre as veias dos sentimentos e prossegue nutrindo de vida a vida que ainda há.

Sou um com minha mãe onde quer que ela esteja. Sou um com as folhas que já estiveram em mim e que foram partindo, uma a uma. Sou um com os dias de ontem que ergueram o hoje que prosseguirá erguendo, enquanto houver um amanhã. Sou um com os olhos que me permitem ver a árvore que vejo, enquanto escrevo, e sou um com os mistérios que só vejo com o espírito aberto ao não tentar compreender.

Sou razão, gosto dos argumentos e das peneiras que me emprestam discernimento para elaborar antes de concluir. Sou silêncio, crente de que, além da razão, moram mundos inteiros que desconheço, que sequer posso ver, porque há entre nós uma cortina costurada na imensidão que se chama mistério.

Onde moram, hoje, minha mãe e meu pai? Onde moram os meus irmão que, prematuramente, se foram? Onde moram as folhas que me enfeitaram por tempos e que os ventos decidiram levar? Como saber? Se a razão tentar racionalizar, despedaça-se em pedaços caídos da árvore que não vejo. Só sei que os sinto em mim. E, se os sinto, é porque eles cabem em mim. Cabem na parte inteira de mim que não conheço.

Estão vivos, eu sei! Como sei? Não sei. Só sei que sei. E que sei, porque há uma seiva que transcende o que há em mim e que, ao mesmo tempo, há em mim, e que ao não me explicar me explica que é lindo, mesmo sem saber, acreditar. As folhas que voam das árvores de abril e dos outros meses não se perdem, não deixam de existir. Voam os voos elevados dos que rompem invernos e acedem primaveras em tempos e espaços encantados.

As religiões trazem lâmpadas para que possamos enxergar com a alma. A minha foi enroscada no bocal da fé, desde os tempos em que eu corria despreocupado ao redor da árvore e arriscava apanhar algum fruto para alimentar de alegria a vida. Os pensamentos eram puros como quem de nada desconfia, porque ainda só conhecia a cicatrização dos joelhos e das mãos raladas em terra por algum descuido infantil.

Hoje é minha alma que dói. E alma dói? Dói. Dói da tristeza das ausências. Dói das decepções dos ausentes de sentimentos. Dói do tempo fugidio incapaz de permanecer. Dor de alma também tem seiva alimentadora, fortalecedora.

Um aniversário é um ritual de agradecimento. A vida prossegue vencendo. Vagarosa e plena. Ou apressada e também plena. Plena como a árvore que recebe chuva e calmaria, silêncio e barulho de revoadas. Plena como cada dia do calendário tem que ser. O abril que se foi , não se foi. Vive em mim.

Agora, é maio. Daqui a pouco, vou chorar o dia das mães sem mãe. Eu tenho mãe. Preciso me lembrar disso. No mistério que mora fora e dentro de mim, eu tenho mãe. O colo não tenho, é fato.

Colo, então, nessa imagem, de um dia nem frio nem quente, de um dia em que o vento perturba pouco a árvore, em que passarinhos, que não pensam o que eu penso, cantam para cumprir o seu estar no mundo.

As flores, também, se abrem sem pensar. Quisera eu apenas cantar ou me abrir para enfeitar de generosidade o mundo... As folhas de abril já se foram, os meus pensamentos permanecem.
*É professor e escritor