William Douglas é Desembargador Federal/TRF2, professor, escritor, Mestre em Estado e Cidadania (UGF) e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo (EPPG/COPPE/UFRJ)Divulgação

Um jornal publicou nota com o título “Clube do Bolinha”, com duras críticas à OAB RJ por, em uma lista de 18 nomes só aparecerem três mulheres e nenhum(a) negro(a). Não vou sequer mencionar o jornal, pois o foco de minha manifestação é a injustiça da crítica e a falta de maior cuidado na apuração de um fato antes de se estabelecer algum julgamento.

Trata-se da escolha das três listas de indicados da OAB para as vagas do quinto constitucional destinado aos advogados. Segundo a nota, “depois de 12 horas reunidos, saíram os 18 nomes. Desses, apenas três mulheres. Nenhum negro ou negra foram indicados”. A pecha de sexismo e falta de diversidade racial nas listas é bastante equivocada, contudo.

A OAB publicou edital no qual qualquer advogado(a) poderia se inscrever para concorrer à honorabilíssima missão de representar a classe na Corte. Foram 60 inscritos. Nenhuma advogada negra se candidatou. Como poderia ser escolhida uma mulher negra? Apenas dois homens negros se inscreveram, tornando a probabilidade de um deles entrar bastante baixa. Dos 60 inscritos apenas 8 eram mulheres. Ou seja, 37,5 % das mulheres inscritas entraram. Já entre os homens o percentual foi de 28,8 % dos inscritos que entraram.

Sendo corretos com a OAB, a verdade é que infelizmente apenas 13,33% dos inscritos eram mulheres e apenas 3,32%, negros. Não se diga que isso decorre de racismo porquanto qualquer advogado(a) negro(a) poderia se candidatar. Quanto à questão de gênero no resultado final, quem poderia reclamar de discriminação seriam... os homens! Afinal, diria alguém. por qual razão a OAB, estatisticamente falando, está colocando “mais mulheres do que homens”?

Outro ponto relevantíssimo é que a OAB já tem paridade de gênero no Conselho, onde há 80 votantes. Temos ali 50% de mulheres e 30% de negros, ou seja, respectivamente 40 e 24 votantes. Mulheres e negros exerceram seus votos e, tal como os homens, certamente
votaram a partir do critério mais importante: o conteúdo e histórico de cada inscrito.

Enfim, a crítica formulada foi bastante infeliz. Poderíamos encerrar este texto aqui, desagravando a OAB. Contudo, os fatos nos convidam a algumas reflexões.

A uma, é salutar e desejável que os tribunais tenham composição variada e representem, ao menos razoavelmente, a “cara” do povo brasileiro. Então, nesse aspecto, torcemos por mais mulheres e negros no Judiciário e, igualmente, em outras posições de destaque na seara pública e privada.

A duas, não é ocioso lembrar que, mais do que a questão estatística, a escolha do Conselho da OAB é feita com base nos currículos e histórico pessoal e profissional dos advogados, devendo prevalecer a meritocracia, e não uma leitura meramente estatística. O foco maior tem que ser na probidade, experiência e capacidade técnica dos candidatos.

A três, a compatibilização dos dois critérios anteriores, aparentemente contraditória, não pode ser feita de forma abrupta. Deve haver sabedoria e serenidade, buscando representar melhor a nossa diversidade na Corte, mas privilegiando as qualidades prioritárias, as quais independem de sexo e cor.

Quatro, informamos que por nossa experiência de mais de 23 anos trabalhando na questão da inclusão social e racial, podemos assegurar que o problema é mais complexo do que se imagina. Além dos percentuais baixos e evidente sub-representação na magistratura, há uma questão de autoestima envolvida. Há experiências mostrando que ações para qualificar melhor os mais pobres, bem como mulheres e negros, funcionam. É preciso incentivar a maior participação de mulheres e negros nesses certames. Ainda que tenham dúvidas sobre serem escolhidos, sem que eles mesmos se inscrevam é impossível a negros e mulheres terem alguma chance.

Cinco, infelizmente também na iniciativa privada, às vezes, há falta de negros com a qualificação necessária. Dizer isso já foi tachado de racismo recentemente, mas essa fala apenas informa a realidade. O fosso social que temos é tão absurdo que a simples exigência de fluência na língua inglesa já é um obstáculo para a maioria dos pobres, dos quais 70% são negros. Já houve quem propusesse proibir a exigência de inglês nas seleções, o que seria terrível: a solução é dar acesso ao aprendizado do idioma e não fingir que ele não é necessário no mundo globalizado no qual vivemos.

Seis, vivemos no Brasil um ataque à meritocracia e isto nos coloca em grave risco. Sou autor de uma teoria que cria distinção entre “meritocracia de acesso” e “meritocracia de exercício”. Ao passo que, para dar acesso ao estudo e a melhores oportunidades de concorrência, é viável algum paliativo que compense desigualdades sociais, quando estamos diante do exercício de qualquer atividade profissional precisamos que a pessoa tenha as habilidades necessárias. Daí, não se pode, por exemplo, retirar o inglês de um concurso ou uma competência mínima para se escolher um cirurgião.

Então, para cumprirmos o preâmbulo e os primeiros artigos de nossa Constituição Federal precisamos, enquanto se executam ações afirmativas, melhorar a educação e criar programas de capacitação destinados aos mais pobres, o que atingirá não só os 70% de negros mais pobres e também os 30% de brancos nessa condição socioeconômica. Estes últimos, por serem esquecidos a maior parte das vezes, são chamados, nos EUA, de “white trash”. Cabe a nós, como sociedade, enfrentar a falta de oportunidades para todos, sem discriminar ninguém, seja por raça, cor, religião, orientação sexual ou origem geográfica.

Sete: ao passo que a OAB RJ é totalmente inocente da acusação que lhe foi feita, merecendo sim elogios, a sociedade continua com um débito a ser corrigido. Essa correção, repisamos, não pode ser adiada nem feita de forma açodada. Enfrentar as desigualdades é ordem da Constituição da República (Preâmbulo e arts. 1º a 4º). Isto precisa ser compreendido e se tornar pauta de Estado e não de governo. Precisamos tornar isso um compromisso de todos, algo que paire acima de quaisquer divergências filosóficas ou ideológicas.

Concluindo, compartilho mais uma boa notícia. Recentemente, quando da votação para a lista de promoção por merecimento de juiz federal para desembargador, a Dra. Letícia Mello apresentou voto levantando a questão aqui tratada e propondo diversas soluções, mostrando que o Judiciário está atento ao tema. Vale anotar que a lista tríplice produzida pelo TRF2 traz duas mulheres e um homem. Mais que isso, traz três nomes que, como outros que concorreram e não entraram na lista, são probos e qualificados tecnicamente, o que se garantiu em especial pelo princípio do concurso público.

A escolhida foi a Dra Carmem Silvia, magistrada que, além de todo alentado currículo e experiência, ministra aulas gratuitas para estudantes pobres e negros.
Vamos comemorar estes avanços! E, cientes do problema, continuar trabalhando. Só para dar mais um exemplo, entre mais de 1.200 procuradores da República no Brasil, há apenas 20 negros, o que confirma a necessidade de assumir que há ajustes a serem feitos na educação e acesso a oportunidades entre os mais pobres.

Repudio a “síndrome de vira-lata” de quem só critica o país. Apesar de os desafios serem enormes, estamos progredindo! Vamos saudar os avanços e trabalhar para que sejam maiores a cada dia. Nesse ponto, precisamos preservar o concurso público, a meritocracia e a busca efetiva de dar acesso à educação e oportunidades aos mais pobres. O concurso público é ótimo mecanismo pois oferece mais condições de competição para mulheres e negros do que a iniciativa privada.

Somos um país com problemas difíceis, mas temos todas as condições de, juntos, superarmos cada um deles. Isso, contudo, só acontecerá se seguirmos, como ponto comum e de partida, a Constituição Federal e se agirmos com sabedoria, serenidade e espírito de colaboração.
William Douglas é Desembargador Federal/TRF2, professor, escritor, Mestre em Estado e Cidadania (UGF) e pós-graduado em Políticas Públicas e Governo (EPPG/COPPE/UFRJ).