João Batista Damasceno: Armas não letais que matam
Ao invés de se manter no âmbito das estradas federais e da legalidade a PRF tem saído pelo acostamento e adentrado em caminhos marginais e vias urbanas
Não foi apenas a morte de um homem dentro de uma viatura transformada em câmara de gás que marcou o protagonismo da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no noticiário dos últimos dias. A chacina da Vila Cruzeiro, com a morte de 23 pessoas, assim como em outros casos de igual natureza, expôs o que anda fazendo a PRF fora das estradas.
Tais atuações, com resultado de mortes, tem levado a sociedade brasileira a indagar o que está acontecendo com a PRF. No imaginário social, a PRF ainda guarda a lembrança do Vigilante Rodoviário e do cão Lobo, fiel escudeiro e companheiro de patrulhas do inspetor Carlos, notabilizados em filmes pela fidalguia com a qual ajudavam os motoristas em tempos nos quais a qualidade dos veículos era duvidosa e as estradas bem piores que as atuais.
Em se tratando de carreira funcional, a PRF é exemplar. Trata-se de uma classe horizontalizada, sem a hierarquização que engessa as demais carreiras policiais. Mas, o que a PRF tem feito não mais corresponde ao imaginário, nem está em consonância com a ordem jurídica. A Constituição da República é clara: “A Polícia Rodoviária Federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Portanto, a Constituição delimitou o âmbito territorial da atuação da PRF, ou seja, as rodovias federais. E nenhuma lei ou ato normativo pode ampliar tais poderes, sob pena de inconstitucionalidade.
Ao invés de se manter no âmbito das estradas federais e da legalidade a PRF tem saído pelo acostamento e adentrado em caminhos marginais e vias urbanas. Duas portarias de ex-ministros da Justiça da atual Presidência da República mudaram as atribuições da PRF e permitiram a integrantes da corporação participar de operações conjuntas com outros órgãos.
Em 11 de fevereiro passado, agentes da PRF, em conjunto com agentes do Bope, já haviam atuado na Vila Cruzeiro com o objetivo declarado de capturar suposta quadrilha especializada em roubos de carga e prender um tal de Chico Bento. Naquela incursão, oito pessoas foram mortas. Em outubro do ano passado, pelo menos 25 pessoas foram mortas em uma ação conjunta da PRF com a PM de Minas Gerais, em Varginha, no sul do estado.
Ao arrepio da Constituição, o site da PRF anuncia que sua atuação não está limitada ao texto constitucional, pois “a PRF tem sob sua responsabilidade a segurança viária e a prevenção e repressão qualificada ao crime em mais de 75 mil quilômetros de rodovias e estradas federais em todos os estados brasileiros e nas áreas de interesse da União”.
Mas não só em áreas que considera de interesse da União atua a PRF. Em 18 de março de 2018, quatro dias depois do assassinato da vereadora Marielle Franco, um policial rodoviário compareceu ao bar Bip Bip, tradicional reduto boêmio em Copacabana, na Zona Sul do Rio, e depois de beber umas e outras começou uma discussão com o dono do bar, Alfredinho, de 74 anos. Alfredinho, que morreu menos de um ano depois, foi detido e levado para a 14ª Delegacia Policial, no Leblon. O tumulto foi criado por um agente da PRF que criticava Alfredinho em razão de uma placa que homenageava a vereadora assassinada. Policial armado e bêbado fazendo arruaça em bar não é novidade para quem já tenha trabalhado na periferia e tido o dissabor de julgar tais casos. A surpresa foi a presença de viaturas da PRF deslocadas para Copacabana onde estava o agente transgressor.
O ovo da serpente que eclode foi colocado na chocadeira pelas sucessivas concessões feitas ao sistema repressivo desde a redemocratização. O aparato repressivo herdado da ditadura empresarial-militar não foi desmontado. Ao contrário, escondeu-se nos esgotos das instituições no aguardo do momento para atuar à luz do dia, o que faz hoje.
Muitos foram os incentivos que, ironicamente, governos populares deram aos porões. Eu trabalhava em Nova Iguaçu quando lá foi instalada uma fábrica de armas que se diziam não letais. A morte de Genivaldo nos dá dimensão da letalidade, assim como os jornalistas que perderam a visão em decorrência de tiros de bala de borracha, disparados enquanto cobriam manifestações, sabem o quanto são lesivas. A ampliação do aparato repressivo não é substitutiva de outros métodos de violência antes empregados, pois se incorporam.
As armas de menor letalidade ampliam o aparato repressivo e os lucros. Elas precisam ser distribuídas aos agentes e usadas, pois têm prazo de validade. Assim, potencializam ainda mais a violência. Ferem, cegam e matam. E também atendem aos interesses dos que se enriquecem com a venda, e às vezes, dos encarregados das aquisições.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.
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