João Batista Damasceno, colunista do DIADivulgação

Em meio à barbárie que significou 56 mortos numa rebelião num presídio em Manaus (AM), no ano de 2017, com cabeças decepadas, pessoas esquartejadas e corpos carbonizados, um juiz se destacou: Luis Carlos Valois. Trata-se de um magistrado desses que honram a magistratura. É um intelectual com severas preocupações, poder de respostas aos problemas que vivenciamos, integridade ética, capacidade profissional e preciosos livros publicados. A quantidade de mortos poderia ter sido maior, não fosse o atendimento ao chamado para negociar o fim da rebelião num complexo penitenciário.
A vara titularizada pelo Valois tinha, em 2017, 17 mil processos e para processar todo o acervo, apenas cinco funcionários. Ele próprio já oficiara ao tribunal informando a impossibilidade de manter o regular andamento dos processos sem que condições adequadas lhe fossem fornecidas. Não sei o que pensou o tribunal. Mas os presos jamais lhe imputaram responsabilidade, pois sabem que ele faz o possível para lhes assegurar os seus direitos, mesmo com as dificuldades encontradas.
Quem acompanhou aquela tragédia no presídio em Manaus e buscou conhecer os motivos da rebelião não encontrou dentre as reclamações dos presos o trabalho do juiz. Ao contrário, os presos o reconhecem como alguém que faz o que está ao seu alcance. Dentre as reinvindicações não havia pedido sobre processo. Não se reclamou do trabalho da Justiça. Até os presos sabiam que o juiz cumpria seu papel e dele não havia o que reclamar.
Naquele ano intensificou-se no Brasil a cultura do ódio, inclusive ao preso. “Bandido bom é bandido morto”, diziam “cidadãos de bem” sem se reconhecerem apologistas de homicídio. Valois não estava de plantão. Não foi testemunhar a barbárie porque quis, mas porque precisavam dele. Salvou vidas, mas foi duramente atacado até mesmo por alguns dos seus colegas da magistratura, do tipo que mais se comprometem a garantir a ordem que garantir direitos.
Numa Vara de Execuções Penais o trabalho do juiz se destina ao preso. É o executor da pena imposta. E tal execução tem regra. O Brasil tem uma lei que disciplina a relação do Estado com a pessoa encarcerada, que é a Lei de Execuções Penais (LEP) e cujo descumprimento coloca o Estado brasileiro no mesmo patamar de ilegalidade daqueles que condena por descumprir outras leis.
Valois busca retirar o Estado da ilegalidade que o STF já declarou como “estado de coisas inconstitucional” e por isso é alvo de críticas por aqueles que não concebem que o Estado não pode subtrair do condenado outros direitos que não aqueles que a lei autoriza sejam afetados, dentre os quais a liberdade de ir e vir. Quando o Estado descumpre a lei que editou perde a superioridade ética que o legitima a julgar aqueles que a descumprem. Colocando-se à margem da lei que edita o Estado se torna marginal a ela.
Como juiz de execução o juiz Luis Carlos Valois tem compromisso de fazer valer a norma de que a existência do juiz da execução penal só se legitima se for para garantir os direitos previstos na LEP. Os presos em Manaus (AM) jamais reclamaram da Justiça ou do juiz. Suas reinvindicações eram outras. Sabem que o juiz faz o que pode (e deve) com os poucos recursos colocados à sua disposição.
Em outra rebelião os presos condicionam o fim do motim à presença do juiz Valois. A revolta decorria da qualidade da comida e queriam sua presença para intermediar com a direção carcerária e dela obter a promessa de que não mais lhes seriam servidas refeições estragadas. De novo não lhe pouparam de críticas.
É estranho que no patamar civilizatório no qual dizemos nos encontrar um juiz seja alvo de crítica por ser depositário da confiança daqueles que julga. É estranho que os juízes devam ser temidos pelo mal que podem causar e não respeitados por suas capacidades de fazer justiça.
Há quem deseje sejam os juízes vingadores e não justos; que sejam expressão do ódio que incendeia os corações e mobiliza parcela da sociedade nestes tempos estranhos. O que se tem demandado é o herói vingador, parcial e incompetente, com suas próprias razões. Mas Valois trata os presos como seres humanos, qualidade da qual pretendem destituí-los para lhe suprimir todos os direitos, inclusive o direito à vida. E por reconhecer valor humano em quem se pretende desumanizar é destinatário de considerações depreciativas.
Luiz Carlos Valois é um dos juízes mais cultos que conheço. Também se caracteriza por seu humanismo, compromisso com os excluídos e por sua eticidade. Dele espero que tenha força para atravessar, com serenidade, estes tempos sombrios e que continue a lutar por uma sociedade justa, humana e igualitária. Afinal, os que lutam por Justiça por algum tempo são bons. Mas os que lutam a vida inteira são imprescindíveis.

João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.