Janaina Cunha é diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc Divulgação

Relações sociais complexas, embora cotidianas, e uma mistura de autobiografia com relatos da sociologia contemporânea são abordagens literárias que retornam ao centro das discussões após a escritora francesa Annie Ernaux haver sido agraciada com o Nobel de Literatura em 2022. A autora, que participa da programação da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), no Rio, reacende aspectos muitas vezes observados com negligência ou, até mesmo, uma certa arrogância, pelos ortodoxos.

Entre eles, a capacidade de transpor para o texto literário uma narrativa francamente reveladora de sentimentos profundos, que marcam as trajetórias pessoais dos seus autores, numa espécie de contaminação benéfica da ficção pela realidade.

Não se trata necessariamente de autobiografias, menos ainda de relatos com finalidade de autoajuda (embora não haja qualquer demérito em um ou outro). O cerne da discussão está na valorização de conteúdos que despertam a atenção de quem pensa não se interessar por literatura e se descobre um possível autor. É tão crítica e grave a distância que se pretende entre o erudito (e, portanto, “válido”) e o corriqueiro, que de tempos em tempos torna-se imprescindível lembrar que toda escrita tem seu mérito.

Deve ser apreciada, atendida e respeitada, no contexto de sua condição. Incentivar as pessoas a traduzir suas vivências em possibilidades de escrita é também uma forma de retratar nosso tempo e registrar memórias.
Como comprova o Prêmio Sesc de Literatura. Em 19 anos de projeto, chegaram ao mercado editorial histórias assinadas por autores estreantes, que encontraram na arte de escrever forma de exteriorizar suas experiências por meio da ficção. Já são mais de 20 mil obras recebidas e 33 escritores revelados. Nesta Flip, teremos mais duas obras apresentadas, uma que versa sobre a devastação ambiental e outra sobre a história de refugiadas da guerra de Moçambique, que se mistura à formação da identidade brasileira.

É fundamental esse entendimento expandido de que identificar na escrita algum senso de realidade pode alimentar o interesse pelo livro, leitura e literatura, num movimento que pode inclusive transformar interesse em apreço. Esse movimento já se faz presente nas festas literárias como a Flip. As programações paralelas do evento, entre elas a do Sesc, proporcionam a mistura do erudito com o repente, a contação de histórias e outras manifestações literárias que fogem do formal.

Afinal, não veio da academia o verso que, a meu ver, define o século XX: “Em São Paulo Deus é uma nota de 100” (Pedro Paulo Soares Pereira, vulgo Mano Brown – Racionais MC’s). Nem foram as escolas formais as promotoras do profundo relacionamento dos jovens de periferia com a escrita. Foi o rap, o hip hop, a possibilidade de falar da vida que empoderaram essas crianças e adolescentes diante da folha em branco.

E que os erros de ortografia não sejam tratados como demérito. Vem do erro a oportunidade de progredir. E da capacidade de se revistar a potência para olhar para o outro, e ver nele um pouco de si mesmo. Um pouco de todos nós.
Janaina Cunha é diretora de Programas Sociais do Departamento Nacional do Sesc