Rio - Aos 66 anos, Antonio Francisco da Silva sabe cozinhar pouca coisa além de macarrão e arroz. Tudo por causa da criação que recebeu da família paraibana, em que a figura masculina era sempre privilegiada: "Eu chegava na cozinha e minha mãe me mandava sair, dizia que ali não era lugar pra homem. As irmãs faziam tudo". Décadas se passaram e hoje Antonio defende com fervor a igualdade. "Absurdo mulher ganhar menos que homem, trabalhando na mesma função", critica. As lições machistas que recebeu da mãe, algo comum para a época, foram superadas por vários fatores, e um dos mais importantes foi a luta da própria filha, Marielle Franco, a vereadora executada no Estácio, no dia 14 de março. "A atuação dela mudou muito a minha visão", admite. "Marielle fez de mim um feminista".
Dos muitos que ouviram as pregações da vereadora do Psol contra o machismo, a homofobia, o racismo e pelos direitos dos moradores das favelas, Antonio foi um dos primeiros a ser afetados. "Por pertencer a uma geração diferente, ele algumas vezes falava coisas machistas que faziam Marielle retrucar; 'pai, não é mais assim, não pode ser assim'",conta Anielle, 33 anos, a outra filha de Antonio. Ele viu dentro de casa, ao lado da mulher, Marinete, a menina que participava de grupos jovens na igreja católica se transformar na mulher combativa e ativista social. "A família abraçou as causas dela", diz Antonio.
Além de pai, tornou-se também um admirador. "Foi assassinada covardemente. Devem ter pensado: vamos acabar com ela, enquanto nós temos chance. Do jeito que estava indo, iria muito longe". Quando Marielle mergulhou no trabalho pelos direitos humanos, depois que uma de suas alunas foi morta por bala perdida no Complexo da Maré, ele perguntou se achava realmente que alguém iria ouvi-la. "Alguém tem que ouvir, pai", respondeu Marielle. Antonio resolveu, então, apoiá-la. Mas reconhece que não esperava que o trabalho da filha chegasse a ter abrangência tão grande. "Ela criou asas e voou".
Filho de casal oriundo da cidade de Lagoa Grande, na Paraíba, e criado na primeira casa de alvenaria da Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré, Antonio trabalhou no comércio, na construção civil e fazendo frete em uma Kombi. Hoje está aposentado. Mesmo vindo de uma geração que costuma condenar os relacionamentos homossexuais, diz que não estranhou quando, há cerca de dois anos, Marielle contou a ele sobre o namoro com Mônica, a viúva da vereadora. "Fiz como das outras vezes, perguntei se era isso que ela queria. Ela respondeu que sim e eu falei: 'tô contigo'".
Antonio diz que frequentava a residência do casal, participava de almoços com as duas em que o prato preferido era costela, especialidade de Mônica. "Não tenho como discriminar o que é feito por amor", diz. Ele acredita que as pessoas podem até discordar, mas não têm o direito de discriminar. Existem alguns obstáculos para chegar a essa aceitação, reconhece, mas acha que a sociedade melhorou bastante. Sonha com o dia em que não exista mais qualquer tipo de preconceito. "A voz de minha filha terá contribuído para isso".
Durante a conversa com a reportagem do DIA, Antonio não deixou transparecer a enorme tristeza que sente pela execução de Marielle. No lugar do lamento, prefere exaltar a luta da filha, as causas que defendia, a forma honesta como fazia política. "Ela foi assassinada covardemente, sem direito a diálogo. O que ela mais praticava na vida era diálogo", destaca. Busca forças para não deixar que o luto paralise a família. Contou que dias atrás falou com Mônica para marcarem um almoço. "Quando é que vamos comer aquela costela de novo? Vai faltar alguém...mas tem que fazer", disse ele à viúva de Marielle.
Além da luta para que a polícia identifique os autores da execução, ele quer que as causas pelas quais Marielle lutava continuem sendo lembradas. No grupo dos que levantam a voz por essas bandeiras, Antonio é mais um, graças às lições que aprendeu com a filha. Alguém tem que ouvir.