Rio - Se existe uma coisa que o povo brasileiro não faz é legislar em causa própria. Desde a sua promulgação, em 1988, a Constituição Cidadã prevê o instituto do Projeto de Lei de Iniciativa Popular: ou seja, no lugar de parlamentares, os cidadãos poderiam apresentar propostas de criação ou modificação de leis (federais, estaduais e municipais), que deveriam ser recebidas nas Casas Legislativas e seguir o mesmo rito das sugestões dos políticos que ocupam cargos eletivos. No entanto, em 30 anos, nenhuma proposta legislativa apresentada pela sociedade foi votada, como sendo de iniciativa popular.
Uma das únicas exigências para a apresentação de um PL de iniciativa Popular é que a proposta esteja assinada por um percentual dos eleitores, que varia de acordo com a esfera de governo. Entretanto, estudo do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio (ITS-Rio) informa que não há notícias de pelo menos um caso em que as assinaturas tenham sido conferidas e a proposta tramitado como um Projeto de Lei de Iniciativa Popular. "Pela impossibilidade de se conferir as assinaturas, o que ocorre hoje no Brasil, tanto em nível federal, quanto em níveis estadual e municipal, é algo batizado de iniciativa compartilhada: Em vez de um projeto de lei de iniciativa popular ser apresentado como uma iniciativa do povo, um membro do legislativo, ou o próprio executivo, acaba adotando o projeto de lei e apresentando este como se fosse de sua autoria", diz o documento.
"O poder legislativo de iniciativa popular é característica de democracias avançadas e maduras. E a história política brasileira está diretamente ligada ao autoritarismo", afirma o cientista político pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Direito pela FGV-SP, Miguel Nicácio. Isso faz com que os políticos brasileiros sejam reticentes em aceitar projetos de iniciativa popular e a própria sociedade não consiga se mobilizar para cumprir os requisitos legais, como obter o número necessário de assinaturas. "O projeto, obrigatoriamente, terá que passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ele pode ser deformado ou sofrer qualquer tipo de sanção. A CCJ pode até vetar. Então, essa equação de fatores explica o porquê do fracasso de projetos de iniciativa popular". Segundo ele, há um embate entre a vontade das ruas e o que acontece nas casas legislativas. "A classe política tem muito medo da vontade popular".
Professor quer ser o primeiro
Presidente do Instituto por Direitos e Igualdade (IDI), o professor Marcelo Biar quer entrar para a história como um dos primeiros autores de uma lei estadual de iniciativa popular. Ele elaborou um projeto que trata da gratuidade do transporte coletivo para parentes e credenciados como visitante de presos.
Segundo Biar, o projeto tem por objetivo aproximar o preso da família e humanizar o cumprimento da pena. "E escolhemos fazer por iniciativa popular, porque a gente entende que é pedagógico construir a conquista de seus direitos".
Biar já está coletando assinaturas, mas ficou surpreso quando procurou a Alerj para se informar. "Os funcionários estranharam. Nunca tinham ouvido falar de projeto de iniciativa popular e perguntavam por que eu não procurava um deputado". Ele disse que nem o formulário para a coleta de assinaturas existia na Alerj. "Até que eu trouxe o do Congresso Nacional. Aí copiaram e me deram um com o logotipo da Alerj", contou.
Rio não sabe como atestar assinatura
No Estado do Rio, onde residem 12,4 milhões de eleitores, são necessárias cerca de 25 mil assinaturas para a apresentação de um projeto de iniciativa popular. Porém, a Assembléia Legislativa do Rio (Alerj) nunca recebeu nenhum. Em 2015, uma Emenda Constitucional que permite a coleta de assinaturas de forma digital foi aprovada. A medida deveria agilizar o processo de participação popular. Porém, essa emenda precisa ser regulamentada com a aprovação de uma lei específica, detalhando como seriam, por exemplo, validadas essas assinaturas. No entanto, até hoje isso ainda não foi feito.
Leis populares foram 'adotadas'
Em 30 anos, quatro projetos de iniciativa popular se tornaram leis. Porém, a autoria deles não foi creditada à sociedade. Foram "adotados" por parlamentares ou pelo Executivo.
O homicídio qualificado, aquele que é cometido por motivo fútil ou torpe, emprega meios cruéis e dificulta a defesa, não fazia parte da Lei de Crimes Hediondos. Mas, em 1992, após o brutal assassinato da atriz Daniella Perez, a mãe dela, a novelista Glória Perez iniciou campanha para modificar a legislação. Foram coletadas 1,3 milhão de assinaturas e a lei foi modificada em 1994.
A compra de votos era prática corriqueira no Brasil. Em 1997, foi lançado o projeto "Combatendo a corrupção eleitoral", do grupo Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), parte da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. O objetivo era punir o político com a cassação do mandato, além de pagamento de multa. Com o apoio de várias entidades, foram recolhidas 1 milhão de assinaturas. O projeto tramitou na Câmara Federal e virou lei em 1999.
O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social foi o terceiro projeto de lei de iniciativa popular aprovado. A proposta obteve o apoio de mais de um milhão de eleitores e a Lei sancionada, em 2005.
A mais recente lei criada por iniciativa popular, a Lei da Ficha Limpa, torna inelegível por oito anos um candidato que tiver o mandato cassado, renunciar para evitar a cassação ou for condenado por decisão de órgão colegiado (com mais de um juiz), mesmo que ainda exista a possibilidade de recursos. Obteve 1,6 milhão de assinaturas.