Rocco exibe seus quadros na laje de sua casa, em São João de Meriti - FOTOS: Luciano Belford/Agência O Dia
Rocco exibe seus quadros na laje de sua casa, em São João de MeritiFOTOS: Luciano Belford/Agência O Dia
Por GUSTAVO RIBEIRO

Rio - Indignado com a morte brutal do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, que teve o carro atingido por 82 tiros disparados pelo Exército no Rio, o artista plástico Marcondes Rocco, 43, decidiu eternizar na tela um momento de alegria da vítima com a família. Mais do que homenagear a viúva e o filho de 7 anos, que escaparam ilesos do veículo fuzilado, o pintor da Baixada Fluminense emitiu seu grito de protesto: "Chegamos a um ponto de ter que explicar detalhadamente que não existem 80 tiros por engano. Em todos os nossos atos sua memória estará presente para que não se repita nunca mais", declarou em uma rede social.

Rocco saiu de casa, no Morro do Conceito, em São João de Meriti, e entregou a obra de arte à técnica de Enfermagem Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, no último dia 18. "Ela está maravilhada com o quadro", diz ele. A lembrança ao crime contra o músico, assassinado ao ser confundido com assaltante no início de abril, foi mais um gesto de solidariedade a famílias destruídas pela violência. Negro, oriundo de família pobre e morador de favela, o artista dedica há quatro anos seu dom de pintar rostos para homenagear parentes de mortos, além de personalidades e pessoas comuns. Sempre priorizando a crítica social contra qualquer tipo de discriminação e a favor dos direitos humanos.

"Minha missão é confortar os corações, conscientizar e questionar. A minha arte tem função. Ela não é decorativa. Sou motivado pela minha bagagem, pelo preconceito que já sofri direta e indiretamente. Pela discriminação ao ex-aluno de escola pública que era sacaneado na faculdade. E eu era muito sacaneado por ser negro, pobre e funkeiro", ressalta Rocco, que também é mestre de capoeira e professor de Educação Física, um entre quatro irmãos e o primeiro membro de sua família a cursar uma faculdade. Viveu em Pilares, no subúrbio, até o início da adolescência, fez curso pré-vestibular para negros carentes e ingressou na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) aos 17 anos.

Em março, ele estreou a exposição "Tempos de Marielle", em cartaz no Museu da Maré até 13 de maio. A mostra retrata, em dez quadros, a trajetória da vereadora. Um deles traz um soldado em pé com fuzil e um negro no chão. "Era uma luta de Marielle evitar que o Exército invadisse as comunidades para não ter confrontos", explica. Rocco já tinha pintado a parlamentar durante um ato na comunidade dias após o assassinato, em março de 2018. O morador da Rocinha Antônio Ferreira da Silva, conhecido como Marechal, morto por bala perdida durante confronto entre policiais e traficantes no mesmo mês, foi ilustrado com asas de anjo no meio das nuvens. A arte foi entregue ao filho do idoso, que tinha 70 anos.

O artista plástico assina exposição em memória à vereadora Marielle Franco - Divulgação

O despertar artístico ocorreu de forma despretensiosa e primária. Autodidata, Rocco começou a pintar quadros apenas com os dedos, porque dizia não ter coordenação motora para trabalhar com pincel. O sucesso exponencial, com encomendas até da Europa, chamou a atenção do artista plástico José Luiz Carlomagno, de Copacabana, que ensinou Rocco a usar os pincéis. Depois de então, já ganhou bolsas de especialização no Museu de Artes Modernas (MAM) de São Paulo e no Parque Lage, no Jardim Botânico. Seu portfólio ultrapassa 400 quadros, vendidos para países como Alemanha, Portugal e Luxemburgo.

Intervenções em velórios e shows

Rocco também se tornou conhecido por intervenções em velórios e outros eventos. A primeira vez em um velório foi quando Almir Guineto morreu, em maio de 2017. Ele pintou o sambista e entregou o quadro ao filho do músico, Almirzinho, durante o último adeus. O mesmo aconteceu com Luiz Melodia. Na ocasião do falecimento do fundador do grupo O Rappa, Marcelo Yuka, o artista fez seu retrato no meio da despedida. Diversos outras personalidades foram presenteadas em vida pelo morador de São João de Meriti, como Alcione, Padre Marcelo Rossi, Dona Ivone Lara, Xande de Pilares e Leci Brandão.

Rosto do músico Marcelo Yuka foi pintado em seu velório - Luciano Belford/Agência O Dia

Ele leva cerca de uma hora para pintar um rosto ao vivo e gosta de presentear artistas no palco. "As assessorias dos famosos muitas vezes não nos dão oportunidade, elas precisam se reinventar. Você pinta um quadro e não consegue entregar. Tem garotos muito talentosos sem chances", critica Rocco. Sobre as homenagens, costuma refletir: "As pessoas só homenageiam as outras depois que elas morrem. É difícil ver uma homenagem a alguém que esteja vivo. Não espere alguém morrer para dar importância, para dizer que ama."

Vítimas de tragédias recentes também foram lembradas pelas mãos talentosas. Samuel Rosa, um dos meninos mortos no incêndio do Centro de Treinamento do Flamengo, era vizinho de Rocco no Morro do Conceito e foi desenhado em uma parede da comunidade. Ele pintou ainda jornalistas que morreram no voo da Chapecoense. Os quadros de dois deles, que eram botafoguenses, foram entregues na Sala de Imprensa do estádio Engenhão. Um cliente cardecista que lhe procurou pela internet já suspeitou que Rocco poderia ser a reencarnação de um artista renascentista homônimo do século 15. "Meu nome é Marcondes e Rocco era o apelido que me chamavam na capoeira. Pura coincidência", destaca.

Atleta vítima do incêndio no Flamengo é exaltado em muro - Divulgação

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