Por RENAN SCHUINDT
Rio - Mãe de oito filhos, quatro deles com idades entre 06 e 17 anos, Ana Peixoto, de 44, mora em um barraco de madeira na comunidade do Brejo, na Cidade de Deus, em Jacarepaguá. Desempregada, ela está preocupada com as férias escolares. O temor é que os filhos não tenham o que comer em casa até o término do recesso. Ana viu com tristeza a declaração do presidente Jair Bolsonaro, ontem, de que é uma "grande mentira" que pessoas passem fome no Brasil. Durante um farto café da manhã com jornalistas estrangeiros, o presidente afirmou que não há, nas ruas do país, pessoas com "físico esquelético". Apesar de ter se retratado, no decorrer do dia, a citação gerou muita polêmica.
"Meus filhos fazem as refeições na escola e no projeto social. Hoje, tivemos comida. Só não sei quanto tempo vai durar. Nossa realidade é essa", desabafou Ana Peixoto, que tem como renda apenas os R$ 464,00 que ganha do Bolsa Família. Ela diz que o dinheiro não é suficiente para comprar a comida do mês inteiro. Para dar refeição aos filhos, ela diz ter passado quatro dias apenas comendo pão. A fé de que vai conseguir algo para os filhos comerem está no projeto Ação Querer Bem Social, da Igreja Presbiteriana de Jacarepaguá, que atende a 120 crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, da Cidade de Deus. Lá, os filhos de Ana tomam café da manhã e ela recebe mantimentos.
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Para a motogirl Flávia de Araújo, de 37 anos, a declaração do presidente não corresponde à realidade da comunidade do Brejo, onde também mora. Apenas há três meses ela conseguiu emprego. Antes disso, fazia biscates e deixava de comer para dar a refeição para duas filhas, de 12 e 14 anos, dividirem: "A professora da minha filha já dividiu a sua quentinha com ela, que não tinha o que comer. Só sabe o que é lágrima aquele que chora".
Pastor da Igreja Presbiteriana de Jacarepaguá, Marcos Amaral, também viu com estranheza a declaração do presidente. Para ele, em relação a uma alimentação digna, a realidade do país está longe do desejável: "Há milhares de pessoas que dormem e acordam com fome. A igreja é uma dessas trincheiras que luta contra essa miséria social".
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De acordo com a defensora pública Carla Beatriz, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, apesar de não haver números oficiais sobre as condições da população de rua no Censo Demográfico, há fome entre elas. "No mês passado, um rapaz desmaiou de fome no Largo da Carioca. Aqui no Rio, a redução dos restaurantes populares afetou diretamente as pessoas que precisavam dele para se alimentarem", lamentou.
Ledilson de Oliveira, 44, mora desde os 16 anos nas ruas do Rio. Nascido em Belo Horizonte (MG), ele veio para a capital fluminense após ver o pai assassinar sua mãe. Diz que conta com ajuda de projetos sociais para comer: "Ele (Bolsonaro) não depende de alguém. Tem comida todo dia. Aí fica fácil falar que não existe fome. Vem na rua ver".
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Marcelo Congo, 41 anos, trabalhava como motorista. Há 4 anos mora nas ruas da cidade. Ele também precisa da ajuda dos restaurantes e projetos sociais para se alimentar. "Ele (presidente) não viveu na pele o que a gente vive. Não dorme ao relento, não pega sol ou chuva. Só quem sofreu é que sabe".
Presidente se irrita e recua sobre polêmica
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"Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não. Você não vê gente pobre pelas ruas com físico esquelético como a gente vê em alguns outros países por aí pelo mundo". Esta foi a declaração de Jair Bolsonaro, durante café da manhã com jornalistas, ontem, em Brasília, que deflagrou uma enxurrada de críticas. Diante da repercussão negativa, ele mudou o discurso e, mais tarde, reconheceu que "alguns passam fome". Depois de evento no Ministério da Cidadania, o presidente se irritou ao ser questionado por outros jornalistas sobre as declarações quanto à fome no Brasil e afirmou: "O brasileiro come mal. Alguns passam fome. Agora, é inaceitável em um tão rico país como o nosso, com terras agricultáveis, água em abundância, até o semiárido nordestino tem (índice) pluviométrico maior que Israel... Não estou vendo nenhum magro aqui. Temos um problema alimentar no Brasil. Temos, não é culpa minha, vem de trás, estou tentando resolver. O que tira o homem e a mulher da miséria é o conhecimento, não são bolsas e programas assistencialistas. Temos que lutar nesse sentido".
Números da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) mostram que, no Brasil, ao menos 2,5% da população ainda estão em grave situação alimentar. Parece pouco, mas o percentual representa um total de 5,2 milhões de brasileiros.
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O drama real da pobreza
Dados processados pela FGV Social mostram que, em 2018, 30% dos brasileiros diziam que não tinham dinheiro para comprar alimentos necessários para suas famílias. Segundo o economista Marcelo Neri, diretor da fundação, em 2014, antes do início da recessão, esse número era de 20%. Para ele, não só existe o problema da fome na visão dos brasileiros como cresceu com o tempo.
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"Ganhos do Bolsa Família diminuem a extrema pobreza", diz Neri. "No congelamento do benefício, a extrema pobreza subiu, em 2015, 23%; em 2017, 17%".
Para o diretor-executivo da ONG Ação da Cidadania, Rodrigo Kiko Afonso, Bolsonaro errou ao dizer que a fome não existe no país: "Os dados mostram o contrário, está aumentando. Infelizmente, o IBGE já tem esses dados, mas ainda não divulgou, seja por questão orçamentária ou política. Insegurança alimentar não é fome: uma pessoa que ganha R$ 140 por mês vai comprar o alimento mais barato possível, só que não vai ter nenhum nutriente correto no corpo".
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Colaborou a estagiária Rachel Siston