Pesquisa revelou que cerca de 1/3 da população adulta da Maré disse ter a saúde mental afetada pela violênciaDouglas Lopes

Rio - Estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e tentativas de suicídio são alguns dos transtornos frequentes diagnosticados em pessoas em situação de extrema violência, segundo estudo pioneiro publicado nesta segunda-feira. A pesquisa Construindo Pontes, realizada entre 2018 e 2020 nas 16 favelas que formam o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, revelou que cerca de 1/3 da população adulta da região, isto é, 31% dos entrevistados, disse ter a saúde mental afetada pela violência. O estudo tem como desdobramento a 1ª Semana de Saúde Mental da Maré, a Rema Maré, que acontece de 23 a 28 de agosto.
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O morador da Favela Rubens Vaz, James Douglas Oliveira, contou que, devido ao contato com a violência presente na comunidade, foi diagnosticado com crise de ansiedade e depressão profunda, mas que, após iniciar o tratamento psicológico, está em um processo de autocuidado.
"Acredito que precisamos falar sobre a saúde mental dos moradores de favela, porque é um tema que em níveis variados, tanto mais intensamente ou mais leve, atinge a todos os moradores do conjunto favelas da Maré. Eu já tive a tentação de tentar o suicídio, mas não fiz, mas de um ano para cá estou vivendo um processo de autocuidado, que eu tive que encarar. Então, a violência afeta a saúde mental dos moradores da Maré desde o campo mais concreto e objetivo na saúde mental da gente. Faz a gente desenvolver sintomas de ansiedade, crise do pânico, depressão", disse.
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As desordens mentais mais comuns relatadas pelos moradores foram episódios depressivos, 26,6%, e ansiedade, 25,5%. Das pessoas que estiveram em meio a tiroteios, 12% relataram pensamentos sobre suicídio e 30%, sobre morte. Elas também apresentaram sintomas físicos como dificuldade para dormir 44%; perda de apetite 33%; vontade de vomitar e mal-estar no estômago 28% e calafrios ou indigestão 21,5%.
A moradora Irone Santiago contou que teve dois aneurismas cerebrais e começou um tratamento psicológico após o filho ser vítima de bala perdida na Maré.
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"Eu sentia, eu conseguia ter muito ódio das pessoas, até comecei a fazer um tratamento. Eu procurei um tratamento psicológico, que é muito importante, e eu descobri o quanto que eu adoeci mentalmente, fisicamente, porque eu tive dois aneurismas cerebrais, precisei operar, por conta do que eu vivi, por conta da violação que o meu filho sofreu e isso abalou muito mesmo a minha saúde".
Os resultados do estudo revelaram que os moradores da Maré passam por situações de extrema violência, como estar em meio a tiroteios ou testemunhar assassinatos, com frequência. A maioria, 63% da população, sente medo, sempre ou muitas vezes, de ser alvejada por uma arma de fogo na Maré e 71% revelou ter medo de que alguém próximo seja atingido por bala perdida. Uma situação que invade o cotidiano, já que ao menos 44% dos entrevistados relataram ter estado em meio a um tiroteio nos 12 meses anteriores, sendo que destes, 73% passaram por esta experiência mais de uma vez.
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"Como ter saúde mental se você mora em um lugar onde você não tem os seus direitos respeitados? Lidar com essa questão de saúde mental é bem complicado para gente que é morador de favela porque é impossível você ter saúde mental, até porque o próprio Estado não colabora para que você tenha saúde e muito menos saúde mental", afirmou Irone.
Um dos efeitos mais graves da violência armada nos territórios de favela é a imposição de barreiras para o acesso a serviços e equipamentos públicos, incluindo aqueles que dão suporte aos moradores em relação à saúde mental. Segundo os dados da pesquisa, 54% dos adultos da Maré sofreram alguma limitação no acesso a equipamentos públicos em decorrência de situações de violência.
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"As dores e os sintomas de saúde mental não são evidentes como os de uma perna quebrada, deles não se tratam com um remédio como os que usamos para dores de cabeça. Nas intervenções artísticas que preparamos para a campanha Rema Maré, perguntamos se devemos lidar com este problema de forma individual ou coletiva. Como posso melhorar a minha saúde mental e ajudar a cuidar dos que estão próximos a mim?", questiona o diretor teatral e principal pesquisador de Construindo Pontes, Paul Heritage.

Segundo a pesquisa, mesmo que não tenham testemunhado um tiroteio, 25,5% dos moradores tiveram alguém próximo ferido ou assassinado; 24% dos moradores e moradoras adultos da Maré viram alguém ser espancado ou agredido nos 12 meses antes da pesquisa. Para 15% dos entrevistados, isso aconteceu mais de uma vez.

Mas, nem mesmo dentro de casa os moradores se sentem protegidos. Mais de 13,3 mil domicílios passaram por invasões, muitas vezes acompanhadas de violência verbal, extorsão e perdas materiais. Entre os moradores que tiveram suas residências violadas, 47% passaram por esta situação mais de uma vez.
"A discussão sobre saúde mental de moradores de favelas e periferias, no contexto da violência a que estes territórios são submetidos, é urgente e fundamental. São situações cotidianas, que restringem a circulação das pessoas, produzem traumas, afetam a saúde física e mental e reduzem a confiança das pessoas nas instituições, já que muitas vezes é a própria polícia a responsável pelas violações de direitos”, avalia Eliana Silva, diretora da Redes da Maré.
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Semana de Saúde Mental
Desdobramento do processo de realização da pesquisa, que durou três anos, a 1ª Semana de Saúde Mental – Rema Maré vai acontecer entre os dias 23 e 28 de agosto e conta com diversas atividades culturais, debates e intervenções nas diferentes favelas que compõem a Maré.
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Dentre elas estão a distribuição do Guia de Saúde Mental da Maré, com orientações básicas aos moradores sobre o tema e que será amplamente distribuído entre os moradores das 16 favelas, encartado no jornal Maré de Notícias e disponibilizado em locais estratégicos como unidades de saúde da Maré e Espaço Normal.
Sobre a pesquisa
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Além de um perfil da população, com dados sobre cor, educação, ocupação, renda, hábitos culturais e religião, a pesquisa Construindo Pontes traz informações sobre a exposição dos moradores a situações violentas; quais situações lhes provocam medo; suas percepções a respeito da própria saúde física e mental; hábitos de consumo cultural e padrões de uso de drogas legais e ilegais.
O projeto, desenvolvido ao longo de quase três anos, reuniu pesquisadores de várias áreas, como ciências sociais, saúde, economia e cultura, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da People’s Palace Projects com a Universidade de Queen Mary, em Londres, e se desdobra em quatro publicações que tratam do tema, a partir de abordagens diversas, além de um boletim e infográficos da pesquisa. O antropólogo Luís Eduardo Soares assina um livro de narrativas sobre o estudo.
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A pesquisa entrevistou mais de 1,4 mil moradores em domicílios escolhidos aleatoriamente, com relatos e percepções colhidos em entrevistas e grupos focais. Foram realizadas 20 entrevistas em profundidade com moradores, sete entrevistas com profissionais e três grupos focais, que reuniram jovens artistas e participantes de projetos artísticos, profissionais da Rede de Apoio às Mulheres da Maré e as próprias entrevistadoras que aplicaram os questionários de casa a casa. A pesquisa também entrevistou 200 usuários de crack, álcool e outras drogas que frequentam a Maré e, em outra frente de trabalho, realizou projetos criativos com jovens artistas da Maré.
* Estagiária sob supervisão de Thiago Antunes