"Aquela pessoa que pensa que sabe tudo, tudo o que fala é sermão. Uma pessoa dessas nunca nasce, vive de extrema-unção"Cleber Mendes/Agência Brasil

Fabrício Carpinejar responde pausadamente. Parece declamar versos após cada pergunta. De tal forma que é preciso prestar atenção ao seu ritmo único para compreender se o poeta está fazendo um pequeno e sutil intervalo para iniciar a frase seguinte ou se, de fato, ele encerrou a sua reflexão. Em sua passagem pelo Rio, o premiado escritor — autor dos famosos guardanapos compartilhados nas redes sociais, com quase 50 livros publicados e muitos prêmios literários, mostrou o seu olhar sensível sobre a vida nesta entrevista ao DIA, concedida na sala de obras raras do CCBB RJ. Em seguida, participou do Clube de Leitura, com curadoria e mediação de Suzana Vargas. Filho dos grandes poetas Maria Carpi e Carlos Nejar e pai de Mariana, de 28 anos, e Vicente, de 20, Carpinejar fala sobre a dor do luto, a ansiedade gerada pela pandemia, a urgência pelo contato físico e as diferentes formas de aprendizagem. E também da paciência herdada da vida em Belo Horizonte, onde mora com a mulher, a mineira Beatriz. 

O DIA: Você produziu muito durante a pandemia. Foram quatro livros publicados, além das lives. Tomando emprestado o título do seu primeiro livro desse período, 'Colo, por favor!', você acredita que as suas palavras serviram de colo para as pessoas?
Carpinejar: Espero que tenha despertado o colo, que não tenha sido só a palavra. Foi num período de reabilitação emocional, que todo mundo teve que olhar para si e ver o que deixava de herança. Todo mundo foi tocado pela possibilidade de morte, de fim, de encerramento. Todo mundo enfrentou uma morte, no mínimo, imaginária. E foi obrigado a essencializar a sua vida, não mais adiar, não mais viver de mentiras educadas ou de desculpas infinitas. Foi um período de enfrentamento. Quando você descobre que talvez esteja no caminho errado das suas próprias convicções, o que você mais precisa é de colo. O colo é como se fosse o pit stop da existência, para você buscar fôlego e começar tudo de novo.
O DIA: Você acredita que a gente conseguiu desacelerar um pouco no ritmo de vida?
Carpinejar: Nem tanto. Toda aquela pressa, aquela celeridade exterior, aquela afoiteza de emendar programas e estar sempre ocupado, foi para dentro, na forma de ansiedade. A velocidade dos acontecimentos converteu-se em velocidade interior. As pessoas ficaram muito mais ansiosas, em pânico. A ansiedade é tentar controlar o futuro. E não tinha mais futuro. O futuro foi suspenso, foi cancelado. Você não tinha mais como fazer nenhum planejamento a médio e a longo prazo. Você era obrigado a apenas corresponder ao mais imediato. E a ansiedade atingiu níveis estratosféricos quando o futuro foi suspenso.
O DIA: Em 'Depois é nunca', você escreve: "O pior é não perder o olfato, e sim o tato". E a pandemia nos tirou o contato físico. Qual foi a sua sensação quando você começou a reencontrar o seu público nas ruas?
Carpinejar: Aumentou a minha responsabilidade afetiva. Você não pode mais apenas debater ideias ou conversar. Você entrega o abraço, a assinatura do seu corpo. As pessoas estão carentes. Se você dá um abraço, são capazes de chorar tudo o que ficou represado durante tanto tempo. As pessoas estão precisando da pele. Não tem mais como ser escritor nesse nosso tempo tão difícil sem o afeto do corpo.
O DIA: Um tema muito presente na sua escrita, inclusive nos seus guardanapos, é o amor próprio...
Carpinejar: Quantas vezes por dia você consegue ser você mesmo? Quantas horas? Você vai contar... Talvez no máximo chegue a uma, duas horas das 24 horas. É muito pouco. Ou seja, você passa todo o dia combatendo a sua autenticidade, a sua espontaneidade, a sua força. E de tanto sufocar a nossa vocação, nós acreditamos que não éramos para ser. O pior aborto é o que você faz com a sua própria vida.
O DIA: No livro 'Coragem de viver', também lançado durante a pandemia, você homenageia a sua mãe e conta especialmente a passagem que ela alfabetizou você, em casa, depois de a escola lhe considerar como um caso perdido. Isso aconteceu com você na década de 70. Você acredita que, de lá para cá, já evoluímos para perceber que um padrão só não é capaz de contemplar todas as possibilidades de aprendizagem?
Carpinejar: Existe a tirania ainda do coletivo. Você deve acompanhar a turma. O seu aprendizado deve acompanhar a turma. E isso vai gerar injustiças. Cada um tem o seu ritmo, o seu temperamento, o seu tempo de absorção de conhecimento. Você não pode ser avaliado de um único jeito, mas de vários outros jeitos. Se uma criança não aprende não é que ela é burra, é que o método é burro para ela. Com criatividade ou mudando ele, a criança vai despertar o seu gosto. Eu tive uma mãe e digo que, se há um anjo da guarda de um lado e a minha mãe do outro, eu corro em direção à minha mãe porque ela me amparou quando eu não podia me defender. Hoje eu posso me defender com as palavras. Mas só posso me defender com as palavras porque a minha mãe defendeu o meu silêncio antes.
O DIA: Você é filho de dois poetas...
Carpinejar: Desculpa, um erro. Dois grandes poetas.
O DIA: Claro! E li que você recebeu o seu primeiro autógrafo, do 'tio' Mario Quintana, quando tinha dez dias de vida. Como foi crescer no meio de tanta poesia?
Carpinejar: Tem o lado lúdico, que é transformar tudo o que acontece de ruim em história. E isso aumenta o nível de cicatrização. Eu cicatrizo mais rápido porque eu sou filho de poetas. Toda tristeza pode virar um verso. Toda tristeza já tem um conforto de um verso. E tem um lado mais passional, que é a teimosia. Família de escritores é uma ilha de teimosos. Todo mundo acredita que tem a razão porque todo mundo é autor e ninguém aceita que a memória do outro possa sobrepujar à sua. Isso também me fez escrever melhor. Não que os meus pais concordem com o que eu escrevo. Mas agora pelo menos eles toleram (risos).
O DIA: Você é um gaúcho de Caxias do Sul, casado com uma mineira e mora em Belo Horizonte. O que já tem mineiro em você?
Carpinejar: A paciência, a calma. Também devido à pandemia. Quem me conheceu há 3 ou 4 anos até fica um pouco assustado.
O DIA: Por que assustado?
Carpinejar: É uma outra pausa, uma outra fluição. É como se você pisasse com mais responsabilidade. Depois de 700 mil mortos, você não pode pisar igual. Isso mudou em mim. Atingiu em cheio a minha personalidade, que era muito acelerada, falante. Eu tinha uma algazarra. Sou mais do suspiro hoje do que da gargalhada. E o mineiro é mais introvertido.
O DIA: Para finalizar a entrevista, você escreveu nesta semana na cabeça 'Não sei' e disse que "dúvida é humildade". É difícil conviver com quem acha que sabe tudo?
Carpinejar: É horrível. É o chato de galocha. Aquela pessoa que pensa que sabe tudo, tudo o que fala é sermão. Uma pessoa dessas nunca nasce, vive de extrema-unção. Há assuntos que eu não sei falar. Isso é bom. Tudo o que você não sabe pode virar curiosidade. Quanto mais você sabe, mais você quer saber. E quanto mais você sabe, mais você acha que não sabe.
José Saramago será tema do próximo Clube de Leitura
Em setembro, o Clube de Leitura do CCBB-RJ receberá Sergio Nazar David, poeta, professor de Literatura Portuguesa da Uerj e pesquisador do CNPq, para falar sobre 'Ensaio sobre a cegueira', um dos clássicos de José Saramago, no ano em que completam 100 anos do seu nascimento.
O Clube de Leitura é composto por três segmentos: "Escritores ao Vivo"; com autores que participarão dos encontros para prosear sobre a própria obra; "Modernos & Contemporâneos"; no qual serão lidos textos e autores sob essa classificação; e "Obras Primas da Literatura Universal"; que tratará de autores importantes dos séculos XX e XXI.

Os encontros têm 1h30 de duração. Sempre oferecendo uma boa oportunidade para quem gosta de ler e conversar sobre as tramas, os personagens e saber até mesmo curiosidades sobre os
escritores. O microfone será aberto para a plateia nos 30 minutos finais dos encontros. A entrada é gratuita, sujeita à lotação do espaço. Os ingressos podem ser retirados na bilheteria do CCBB Rio de Janeiro ou no site da Eventim, a partir das 9h do dia do encontro.