Desde então, sinto a sua ausência cada vez mais presente no quintal. Com ele, também se foi uma das heranças deixadas pela minha mãe, a de lhe dar cuidados, comida e água e me certificar de como ele estava antes de dormirArte: Kiko

Quando Fabrício Carpinejar começou a ler "Pássaros comem na mão", durante o Clube de Leitura do CCBB RJ, no Centro do Rio, na tarde de quarta-feira, o meu pensamento viajou até o portão de casa, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O texto dizia: "A minha dor eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver... Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas no armário, limpando a casa, xingando Deus; eu sei resolver". As palavras fazem parte do livro 'O amor esquece de começar', do poeta e cronista gaúcho, em que ele segue escrevendo, na verdade, como é difícil lidar com a dor do outro.
Mas bastou a introdução para eu me lembrar do Bryan, o nosso pastor canadense. Pensei em como ele me seguia praticamente até a rua quando chegava alguma entrega em casa. Eu andava; ele acompanhava os meus passos. Não adiantava dizer: "Fica lá, Bryan". Ele sempre ia junto. O jeito era sair e aguardar a encomenda na calçada, sem correr o risco de ele fugir. Na volta, quando eu abria novamente o portão, lá estava ele, com o focinho agarrado à entrada da garagem, já me esperando. Hoje sei como é bom ser escoltado por um afeto durante a vida.
Essa imagem me veio à mente naquelas primeiras palavras de Carpinejar. Como se o meu coração tivesse escutado a palavra 'dor' e feito a tradução imediata para a sua mais recente cicatriz dentro de mim. Na segunda-feira, havíamos chorado a partida do Bryan. Desde então, sinto a sua ausência cada vez mais presente no quintal. Com ele, também se foi uma das heranças deixadas pela minha mãe, a de lhe dar cuidados, comida e água e me certificar de como ele estava antes de dormir.
Até hoje, tenho o instinto de procurá-lo pelo terreno. Outro dia, ao chegar à garagem, abri a porta do carro e fiquei conferindo as mensagens no celular. Por duas vezes naqueles poucos minutos, eu olhei para o meu lado esquerdo. Afinal, era ali que o Bryan sempre estaria, me esperando. E eu pedia: "Deixa eu passar".
Hoje, me faltam a sua escolta, o seu latido imponente, a sua correria pelo quintal e os cuidados que preenchiam o meu tempo. Não poderei me gabar, silenciosamente, de que faço pilates para retirar sozinha do porta-malas do carro o saco de ração de 15 quilos do Bryan.
Sim, eu sei curar a minha dor ao não interromper a lembrança do seu focinho grudado ao portão. Essa memória surgiu para mim mesmo eu estando a 25 quilômetros de casa. Aliás, reforcei a distância ao me deparar, em outro momento, com a bela vista numa janela do quinto andar do CCBB RJ, onde acontecia o Clube de Leitura.
Com o tempo, sei que os instintos de procurá-lo fisicamente vão cessar. Mas ele estará presente na vida que segue por aqui. Foi assim na quinta-feira, quando abri a porta da cozinha pela manhã cedinho e o gato adotado pelo Bryan apareceu para comer a ração que compramos para ele. Olhei para aquela cena e sorri, sozinha, com a certeza de que a herança se renova no nosso quintal da saudade.