A Língua Portuguesa tem mesmo essas coisas: há palavras específicas para cada universo, mas podemos transportá-las de um mundo para outro. Assim fazem os poetas. Arte: Kiko

Os primeiros acordes já ecoavam em uma sala da Fundição Progresso, numa tarde ensolarada
no Rio, enquanto aguardávamos a luxuosa prévia da Orquestra Petrobras Sinfônica, sob a batuta do maestro Felipe Prazeres, com a cantora Mart’nália. “Daqui a pouco eles vão treinar”, comentei com a fotógrafa Vanessa Ataliba, que me acompanhava naquela matéria. Imediatamente, tentei me corrigir, aos risos: “Quer dizer, eles vão ensaiar”.
Logo imaginei que o meu ato falho certeiro era fruto dos mais de 20 anos de cobertura como repórter
esportiva, especialmente no vôlei. É impossível calcular quantas vezes estive à beira da quadra olhando
atletas repetirem movimentos à exaustão. Ir à Urca, na Escola de Educação Física do Exército, fazia parte
da minha rotina. Lá, acompanhava os times comandados por Bernardinho: as meninas do Rio e a Seleção masculina, em suas passagens pela cidade. O cenário que aparecia à minha frente era o de jogadores
refazendo ataques, cortadas, bloqueios e recepções.
Simulando situações de jogo. Fiquei com aquela minha fala na Fundição Progresso em mente por vários dias até chegar à conclusão de que a orquestra também treina para um show, assim como os atletas ensaiam para o grande espetáculo que é uma competição. A Língua Portuguesa tem mesmo essas coisas:
há palavras específicas para cada universo, mas podemos transportá-las de um mundo para outro. Assim fazem os poetas. 
Na música, no esporte ou em outra profissão, a repetição nos conduz na busca pela excelência. Hoje é evidente que o meu olhar captou aquilo que o meu último editor de Esportes fazia nos últimos anos em que
trabalhamos juntos. Afinal, foi com ele que eu vivi a transição para trabalhar na edição do jornal. E aprendi que a gente interioriza também a repetição de bons exemplos. São nítidas as situações que ele resolvia e que hoje me servem de espelho. 
Mas o momento ao vivo sempre guarda a magia do inesperado. Por mais possibilidades traçadas antecipadamente, o script da vida desafia o treino. Ficou claro quando o maestro Felipe Prazeres falou, naquele mesmo dia, sobre o concerto ‘Coldplay Sinfônico’, até então só apresentado em transmissão online pela orquestra. Diante do público, no entanto, ele não sabia como seria. O mesmo acontece no esporte. Não há favoritismo capaz de traçar previamente um rally no vôlei. Não há como prever aquele momento em que a adrenalina sobe e a gente nem pisca. O olhar tenta acompanhar fielmente por quais mãos a bola irá passar, quem fará uma defesa salvadora e em que momento, enfim, ela chegará ao chão. No jornalismo, a
notícia — sempre imprevisível — também aparece desafiadora e, diante dela, é preciso criar novas
soluções diante do que já foi vivido.
Assim, a prática instiga a teoria. Afinal, não aprendemos a simular surpresas. Nunca saberemos em que momento — e se realmente — virão os aplausos; quando haverá um bloqueio nas nossas ambições ou quando festejaremos um ponto como se tivéssemos conquistado um grande campeonato. Há
uma linha tênue entre o preparo e o imprevisível e, vira e mexe, a vida nos transforma em regentes do inesperado.