Trem da Supervia Divulgação

Rio - A CPI dos Trens da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) produziu, nesta segunda-feira (5), seu relatório final. O DIA conversou com especialistas sobre o sistema de trens sobre os pontos mais importantes do relatório, quais os principais problemas enfrentados pelo sistema e quais as principais medidas que devem ser tomadas para melhorá-lo. Ambos apontam que mudanças estruturais são fundamentais para o modal.

Segundo os especialistas ouvidos, o ponto que chama maior atenção no documento é a identificação concreta de que o sistema de trens fluminense se encontra "em estado de pré-colapso". Atrasos recorrentes nas composições, problemas de segurança, superlotação, ausência de ramais indispensáveis para o bom funcionamento das operações e estrutura precária das estações tornam o dia a dia dos passageiros um verdadeiro calvário.

Opinião dos especialistas

Rafaela Albergaria, mestre em Serviço Social e fundadora do Observatório dos Trens, iniciativa da sociedade civil que acompanha e fiscaliza o transporte no estado, afirma que a situação de pré-colapso é consequência de uma série de fatores que fazem com que a operação do sistema seja extremamente insegura e produza várias violências para quem o utiliza. O pré-colapso se caracteriza por uma situação na qual o conjunto de problemas é tão grave que leva a uma disfuncionalidade dos serviços a ponto de poder ocasionar a sua interrupção.
Os maquinistas, por exemplo, não contam com nenhum meio para visualizar a plataforma, quer seja retorno de câmera da plataforma, quer seja pelo retrovisor na cabine, para saber como está a situação dos passageiros antes de fechar as portas. Além disso, as portas das composições não têm sensores para proteger os passageiros antes de se fecharem. Esta situação faz com que aumente exponencialmente o número de ocorrências violentas nos trens, como passageiros ficando presos nas portas. O vão entre os trens e as plataformas, que deveria ser de 10 cm de acordo com as normas da Abnt (Associação Brasileira de Normas Técnicas), chega a atingir 50 centímetros em algumas estações.
Segundo Albergaria, a pesquisa "Não Foi em Vão" identificou que em 2018 em média duas pessoas morreram por semana nos trens. "Este número alarmante faz com que não se possa falar que se trata de acidentes, mas sim de uma violência recorrente. Minha prima Joana Bonifácio Gouvea morreu utilizando os trens no dia 24 de abril de 2017 ao ficar presa na porta e ser arremessada nos trilhos. A SuperVia, para não pagar indenização, alegou que a morte se deveu a suicídio", conta.

Má conservação da malha ferroviária

Outro problema grave é a má conservação da malha ferroviária. Muitos dormentes estão danificados, o que gera riscos de descarrilamento dos trens. As presilhas que prendem o trem aos trilhos também estão danificadas ou simplesmente não existem em muitos trechos do trajeto, assim como a sinalização. Isto faz com que os trens tenham que circular com uma velocidade muito menor.
No trecho da malha próxima ao Maracanã, quando o trem se desloca ocorre uma forte trepidação, o que também gera risco de descarrilamento, colisão entre composições e outros desastres. Além disso, a superlotação das composições aumenta o risco de acidentes, fazendo com que os vagões muitas vezes trafeguem com as portas abertas.
"A SuperVia obtém seus lucros a partir do número de passageiros transportados por composição, o que faz com que não exista uma preocupação em expandir a quantidade de trens e de ramais expressos para atender a população. Esta situação aumenta exponencialmente o tempo gasto no transporte pelos usuários. Nos estudos feitos pelo Observatório dos Trens conclui-se que durante um ano o tempo médio gasto no transporte pelo cidadão é de um mês. Esta situação compromete globalmente a qualidade de vida da população e gera diversos problemas de saúde", afirma Rafaela Albergaria.
Os constantes atrasos também fazem com que os passageiros tenham sua vida profissional comprometida na medida em que consequentemente também se atrasam para o horário do serviço.
Toda a situação de precariedade demanda, segundo especialistas, uma auditoria independente para que sejam avaliados os custos de operação da SuperVia e os investimentos necessários na melhoria dos transportes. Nem a Agência Reguladora dos Transportes Públicos do Estado do Rio de Janeiro (Agentransp), nem a Secretaria de Transportes do Estado do Rio de Janeiro apresentaram durante a vigência da CPI dos Trens nenhuma demonstração de custos da operação da malha ferroviária.
A previsão de investimentos da empresa até 2020 para melhoria do sistema era de R$ 2 bilhões, mas não há nenhuma comprovação oficial de que este investimento foi feito. "A transparência em relação aos investimentos é fundamental para que sejam feitas estimativas das necessidades de recomposição do maquinário ferroviário, o aumento do número de composições, o retorno das linhas expressas e a expansão dos ramais", aponta o relatório.
Outra necessidade premente é a integração do sistema ferroviário com o conjunto do sistema de transportes, principalmente os sistemas de metrô e ônibus. Passageiros que vêm de regiões distantes do centro da cidade muitas vezes são obrigados a pegar três ou quatro conduções, o que faz com que o preço da passagem cresça exponencialmente — isto porque o bilhete único só cobre duas passagens integradas. 
Quem vem do interior de São João de Meriti e pretende chegar à Zona Sul do Rio de Janeiro, por exemplo, tem de pegar três conduções. Segundo estimativas do Observatório dos Trens, quem tem que pegar mais de duas conduções para chegar ao trabalho por dia gasta por mês 30% de um salário mínimo. Este número é muito maior do que o previsto na Constituição, que prevê que um trabalhador deva gastar no máximo um total 6% de um salário mínimo para ir e voltar do trabalho.

Estrutura do sistema de transportes

O relatório aponta que os sistemas ferroviário, de ônibus, metrô e BRT, ao invés de se complementarem, são muitas vezes concorrentes. Eles cobrem regiões da cidade em paralelo, sem fazer as devidas extensões de forma integrada. "Seria fundamental integrar o sistema de transportes com um só bilhete, de maneira a cobrir toda a extensão da região metropolitana do Rio para que o direito ao transporte fosse garantido sem que isso representasse um ônus financeiro para o cidadão", afirma Albergaria.
A pesquisadora acrescenta que existe um debate que está sendo pautado pela sociedade civil, não só no Rio de Janeiro mas nacionalmente, no sentido de propor um sistema único de transporte. Segundo ela, a lógica que governa os transportes é a do lucro, de transformar o serviço em uma mercadoria, fazendo com que muitas vezes o BRT faça o mesmo trajeto do trem, por exemplo, sem que haja uma integração nem da tarifa e nem da física dos transportes. "As rotas dos transportes das cidades e dos estados não acompanham a rota de deslocamento dos trabalhadores. Muitas pessoas se encontram em situação de rua não por não ter casa, mas porque para fazer o deslocamento de casa até o trabalho precisa ter o valor de dois bilhetes únicos que totalizam R$ 17,10, o que inviabiliza o transporte diário. A solução é pernoitar na rua durante a semana e retornar para casa somente nos fins de semana", observa.

Para o professor Hostillio Ratton, do Programa de Engenharia de Transportes da Coppe/ UFRJ, o problema do sistema de transportes ferroviário no Rio de Janeiro é estrutural. Isso porque, segundo ele, a urbanização da cidade ocorreu de maneira desordenada e um transporte que inicialmente era destinado a cargas no início do século XX foi transformado em transporte de passageiros. Assim, a ausência de um planejamento urbanístico da cidade se associou à ausência de planejamento do setor de transportes de maneira geral.
"Seria necessário repensar todo o modelo de desenvolvimento urbano da cidade para que as viagens dos cidadãos não sejam concentradas nos horários de pico e os trens se tornem ociosos fora destes horários", aconselha. Conforme o professor, essa situação é desfavorável tanto para as empresas responsáveis pelos transportes como para os passageiros, na medida em que fora do horário de rush os trens têm sua capacidade subutilizada e nos horários de rush enfrentam uma sobrecarga de passageiros a qual não conseguem dar vazão.
Outro problema destacado pelo professor é a não existência de uma precificação das viagens de acordo com as distâncias percorridas, o que faz com que a viagem se torne cara para quem vai fazer um trajeto curto de poucas estações. Para a operadora também há oneração sem a quantificação dos preços cobrados nas passagens de acordo com as demandas operacionais.
Como alternativa, Ratton aponta não só a necessidade de uma reordenação do modelo de transportes, com um estudo detalhado dos fluxos de deslocamento da população pela Região Metropolitana. "É necessário saber para onde a população se desloca, em que quantidade, quais são as rotas principais, quais são os destinos e quais os principais gargalos. A partir daí, devem-se propor alternativas criando novas rotas e planejamento do transporte público visando suprir demandas específicas", conclui ele.