Aprendi que não existe uma chave mágica que mude o status do nosso coração assim que cruzamos uma fronteira diferenteArte: Kiko
Conexões entre memórias
Eu também adoro essa ideia de rumar para novas direções, mas hoje sei que uma rota geográfica diferente nem sempre muda o nosso ânimo
Setembro costuma ser o mês das minhas férias, quando o inverno se despede e a primavera chega renovando a nossa esperança em florescer. Neste ano, não foi diferente e fiquei pensando nas redações da época do colégio, logo após as férias escolares, e no quanto a gente cresce com o pensamento de que só teremos o que contar se fizermos as malas para outros destinos, longe de casa. Eu também adoro essa ideia de rumar para novas direções, mas hoje sei que uma rota geográfica diferente nem sempre muda o nosso ânimo.
Acredito, aliás, que isso tenha ficado mais claro para mim nas férias de 2019, também em setembro, um mês após a morte da minha mãe. Eu poderia estar em qualquer outro lugar do mundo que o meu sentimento naqueles dias seria o mesmo. Aprendi que não existe uma chave mágica que mude o status do nosso coração assim que cruzamos uma fronteira diferente. Naquela época, felizmente, tive amigos que me acompanharam em programas culturais pelo Rio. Era disso que eu precisava no momento: encontrá-los para conversar e voltar para casa todos os dias, sem tentar fugir do luto.
Neste ano, mais uma vez, as amizades estiveram presentes nas minhas férias e, com elas, embarquei em andanças pelo Rio. Minhas companhias vieram de várias rotas: algumas lá do Jardim da Infância; outras da trajetória no jornalismo. É incrível como fazemos visitas inéditas em universos que acreditamos já conhecer bem. Assim, revisitar memórias e construir outras lembranças se tornam exercícios revigorantes.
Com a bagagem dos meus 45 anos, viajei por histórias captadas pelo meu coração. Ao lado da minha irmã, por exemplo, peguei carona na emoção de Tiago Barbosa, o Milton Nascimento do musical ‘Clube da Esquina — Os sonhos não envelhecem’. Ao fim de um espetáculo de sábado no Centro do Rio, o ator — nascido em São João de Meriti e vindo de uma temporada de sete anos na Espanha — não conteve as lágrimas ao ver parte da família pela primeira vez na plateia.
Guiada pelo meu olhar, também embarquei, em outra oportunidade, no movimento do Matheus, que pintava uma tela enorme durante um evento de arte na Zona Sul. Parei para falar com ele por alguns minutos. Nascido em Bangu e criado na Pavuna, ele me apresentou o seu nome artístico, Sagace Proibidão, e o seu perfil no Instagram. Lá, segui na rota da sua história, descobrindo que a sua arte é inspirada no pai e na mãe, já falecida e que era artesã.
No trânsito constante por essas histórias, a passagem é natural e não está à venda. E talvez por isso seja tão valiosa. Assim, tive presentes inesperados nas férias, como um belo trio de gérberas que ganhei como ‘brinde’ após ter comprado um arranjo de flores. Fiquei pensando que a minha efusividade deve ter sido lindamente infantil ao ver as flores — depois, a comerciante me contou que eu havia sido a única “adulta” a receber o mimo naquele dia. Mas talvez eu seja mesmo uma menina que acredita ser possível decolar por novos ares fazendo conexões e escalas entre memórias.
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