Olinda foi casada por 27 anos com MonarcoReginaldo Pimenta / Agência O DIA

Rio - Criação de acervos, exposição de troféus e gravações de composições musicais são algumas das formas que as viúvas de grandes sambistas encontraram para manter o legado de seus maridos vivos. Essa luta se tornou filme, "De Você Fiz Meu Samba", dirigido por Isabel Nascimento Silva, e chegou a ser exibido no Festival do Rio, no mês passado. Além da preservar a memória, elas aprenderam a lidar com a saudade, cantarolando suas grandes obras no dia a dia para encontrar algum alento na ausência de seus companheiros.

De acordo com a diretora e produtora do filme, Isabel Nascimento Silva, o longa tem o objetivo de contar diferentes perspectivas de como foi para essas viúvas acompanhar as trajetórias de seus maridos. "Muitas foram parceiras anônimas, responsáveis pelo trabalho doméstico, outras sofreram discriminação nesse cenário que é majoritariamente machista. Essas cinco mulheres continuam falando das memórias que construíram ao lado dos compositores com amor e saudade. Isso me emociona muito."
Ainda segundo a produtora, no momento que eles morrem, essas viúvas se tornam guardiãs da memória do samba e ganham, pela primeira vez, o destaque e protagonismo. "Elas ressignificam o lugar delas no samba e na cultura brasileira depois que eles morrem. Essa é a potência do filme", acrescentou. O projeto, que contou com uma equipe totalmente feminina, tem como objetivo ampliar a inserção feminina no mercado. "Esse longa esbarra um pouco na questão de etarismo. Quase não vemos obras retratando as mulheres de 70, 80, 90 anos falando de sexualidade, prazer, traição, desejo, relacionamentos abertos". O filme estreou no Festival do Rio e também participou de uma mostra em São Paulo. Em breve deverá estrear nos cinemas. 
Resgate de Délcio Carvalho
Délcio Carvalho, compositor de músicas emblemáticas, morreu em 2013. Nascido em Campos, no Norte Fluminense, assinou canções como "Sonho Meu", "Acreditar" e "Alvorecer" com Dona Ivone Lara, sua maior parceira. "Vendaval da vida", com Noca da Portela, é outro de seus clássicos.
Sua viúva, Bertha Nutel, de 75 anos, encontrou nas aulas de canto e se apresentando como drag queen, uma maneira de preservar a obra do marido. Ela criou a Alla Gurevith, uma personagem que usa roupas coloridas e canta composições do sambista. "Quando ele era vivo, uma das minhas maiores preocupações, principalmente como jornalista, era preservar as coisas que ele tinha", disse. "Eu fui guardando tudo o que eu achava importante na vida dele. Com isso, eu tenho realmente toda a obra dele dentro da minha casa", acrescentou.
Bertha conheceu Délcio quando trabalhava na Enciclopédia da Música Popular Brasileira, em 1976. "Na época, ele fazia parte da Imperatriz Leopoldinense. Conversa vai, conversa vem, eu até notei que ele tinha mal gosto para se vestir, usava uma calça com camisa estampada, meia estampada, eu achava maluco", contou. "Mas, durante a nossa convivência, eu fui percebendo que aquilo tudo não tem a menor importância. Não sei se me apaixonei pelo homem ou pelo compositor que ele era. A obra dele me deixou apaixonada. A facilidade que fazia música, letra, era outro mundo pra mim. Era algo totalmente diferente."
 
Quando o compositor faleceu, Bertha procurou alguma coisa para ocupar sua cabeça e não ficar refém da saudade. "Nessa história toda eu fui aprender canto porque eu queria gravar as letras dele. Tudo o que pude fazer para manter ele vivo, pelo menos a sua obra em movimento, eu fiz. Hoje eu sou uma drag queen que interpreta as músicas dele", comentou ela. "Geralmente, Drag dubla música americana, mas a Alla não. Ela só canta Délcio Carvalho porque eu dei vida para ela. A Alla é uma pesquisadora de música e, durante o seu estudo, descobriu as músicas dele e ficou apaixonada", explicou a jornalista.
 
Sobre a saudade, ela declarou que chega uma hora que o sentimento já faz parte da vida. "Esse negócio de morte, de perder, me deixa tão para baixo. A gente sabe que a vida da gente é perder sempre. Quando ele morreu, eu falei: tenho que fazer algo, eu preciso ocupar esse espaço. A partir de então, passei a tomar conta de mim. Fiz bariátrica, aprendi canto, tudo para ocupar a cabeça. Eu não podia ficar parada. A velhice é algo trágico", finalizou Bertha, que é uma das viúvas entrevistadas no documentário "De você Eu Fiz Meu Samba". Para divulgar shows, apresentações e músicas gravadas, ela criou o Instituto Délcio Carvalho, com perfil no Facebook e Youtube.
 
Uma saudade chamada Monarco 
Ambos moradores do Jacarézinho, comunidade da Zona Norte do Rio, Olinda da Silva Diniz, de 62 anos, conheceu o compositor Hildemar Diniz, o Monarco, em 1994. O eterno líder da Velha Guarda da Portela e presidente de honra da agremiação faleceu ano passado e deixou um gigantesco legado.
 
No começo, a paixão do sambista por Olinda era apenas platônico porque ela não queria nada com o compositor. "Ele ficava correndo atrás de mim igual um louco e eu falava para ele ir embora. Eu tinha acabado de sair de um relacionamento sofrido, com muitas marcas e não queria passar por isso de novo", contou. "Ele me dizia que o sonho dele era ficar comigo. Eu já cheguei até mentir e falei que era casada."

Com a morte recente de Monarco, Olinda ainda está estudando maneiras de manter o seu legado vivo. Ela tem o acervo do cantor em sua casa, com discos, composições e fotografias. Para homenageá-lo este ano, seu desejo é fazer um evento musical com o nome dele, mas não tem nada certo. "As músicas do Monarco são lindíssimas, elas falam com o coração. Eu cheguei a conversar com algumas pessoas que estamos querendo fazer um acervo, com roupas, sapatos, acessório de shows. Eu não dei nada porque queremos dar prosseguimento a esse projeto", declarou. "Quero manter a memória dele viva. Ele sempre quis isso também. Teve um dia que me pediu para jogar todas as fotos fora porque achava que eu não ia dar importância e que ninguém ia lembrar dele."

Olinda contou que ela e o sambista tinham costume de dormir de mãos dadas e, no seu último dia em casa, quando passou mal, Monarco apertou sua mão mais forte. "Ele não percebeu porque naquela noite do dia 18 de outubro foi a última vez que dormimos juntos. A última vez que ele ficou em casa. Dali, foi para o hospital e não voltou mais. Passei 55 dias com ele e parecia que a sua família sabia que ele ia morrer, mas ninguém quis me contar", acrescentou. "Eu pedi muito para que ele não vá, mas se foi. Hoje, prefiro acreditar que ele mudou de casa, está em um lugar melhor para me sentir em paz", disse.

Para amenizar a saudade, Olinda conversa com a foto de Monarco que está grudada na parede de sua casa. "Não consegui mexer nas coisas dele ainda. Tem o sapato e o chinelo que ele mais usava aqui e eu não guardei. Deixo ali porque é como se ele tivesse ainda presente", respondeu. "Eu ganhei uma foto enorme, parece que ele está vivo. Só quando morrer vão tirar isso de mim. Não dou, não troco e não negocio. Eu converso, beijo ele antes de dormir e quando acordo dou bom dia", contou. "Não quero saber se vão me achar maluca. Essa foi uma maneira que criei para não sofrer, para tê-lo vivo. Ele está vivo dentro de mim sempre, na minha memória", concluiu Olinda.
 
Homenagens a Ratinho
 
Autor dos clássicos "Vai Vadiar" e "Coração em Desalinho", Alcino Correia Ferreira (1948 - 2010), conhecido como Ratinho, teve suas letras interpretadas por grandes nomes da música brasileira, como Jorge Aragão, Beth Carvalho e grupo Fundo de Quintal. Denize Correia, 64, viúva de Ratinho, é uma das melhores amigas de Olinda, eterna companheira de Monarco. Isso porque os dois sambistas eram muito amigos e fizeram diversas parcerias musicais juntos. O escritório de sua casa se transformou em um grande acervo, onde canções, discos, troféus, cadernos e fitas compõem o cenário e contam a história do músico. "Tudo dele está aqui dentro. Meu marido não cantava, mas era inteligente e perfeccionista. Quando estava compondo, gostava de ver tudo correto".
 
Segundo ela, no início da paixão Ratinho chegou a falar para  não esperar nada dele pois não era homem de se prender. Quatro meses depois eles noivaram. "Foram muitos anos juntos. Quando conheci ele, eu tinha 18 anos, era uma garota ainda. A gente se apaixonou muito rapidamente um pelo outro, até evitei no inicio porque estava saindo de um relacionamento, não queria me envolver com ninguém, mas ele insistiu e eu cedi", contou. "Um fato engraçado, que eu até contei no filme, é que ele me pedia para não esperar nada dele porque era do samba, compositor, não se prendia a nada. Depois de quatro meses, ele me pediu em casamento. Ele era incrível, um marido maravilhoso e um excelente pai", concluiu.
 
Roberto Ribeiro presente
 
Dermeval Miranda Maciel, mais conhecido como Roberto Ribeiro (1940-1994), foi um dos principais cantores de samba do Brasil, com mais de 20 discos gravados. Para preservar sua memória, a viúva, Liette de Souza Maciel, escreveu um livro sobre a vida do ícone do Império Serrano, com o título "Dez Anos de Saudade".
 
"A saudade é uma coisa que não tem jeito. Saudade é saudade, se sente. Eu consegui me segurar um pouco porque a primeira coisa que fiz, quando ele estava ainda doente foi procurar um apoio espiritual", disse Liette. Segundo Liette, Roberto era um homem muito brincalhão na rua, mas dentro de casa sempre foi muito sério. "Ele era muito amoroso, eu o amava demais. Fiquei tão emocionada com o filme, com esse trabalho, foi tudo muito bem feito. É muito importante contar a história dessas pessoas tão importantes para a cultura brasileira."
 
Liette cantava em um coro quando conheceu o sambista. "Eu o vi e pensei: aquele é meu e ninguém pega. Ficamos conversando no dia da gravação e depois fomos para um bar falar de trabalho. Sentei perto dele e começamos a falar do Império Serrano, que é minha escola", acrescentou. "Ele disse que sempre gostou do Império então levei ele em uma festa lá, no mesmo dia, da velha guarda. No dia seguinte fomos de novo e todo mundo adorou ele. Foi quando o presidente da escola o chamou para puxar o samba enredo", completou ela, que também está presente no documentário.
 
Filhas também cuidam de legado
 
Além das viúvas que preservam a imagem de seus companheiros, algumas filhas de grandes compositores também lutam para manter a memória de seus pais, como é o caso da pedagoga Andréa Cristina Serra de Araújo, 54, filha de Wilson Moreira.
 
Andréa faz parte de um grupo Herdeiras do Samba, no qual ela canta suas composições inspiradas no pai e as músicas do próprio sambista. "Eu defendo o legado do meu pai e sempre que posso falo sobre ele. Inclusive, fui convidada para ir a Paty de Alferes, onde ele tem raízes e família, para falar sobre sua vida e fazer uma homenagem", contou. "Eu acredito que o artista morre, mas a sua obra não, ela adormece. Para que ela não durma, nós fizemos esse grupo", completou.
 
Além de cantar, Andréa também escreve. Há pouco tempo ela lançou um livro de poesias na Feira Literária da Portela, onde era o lugar que seu pai mais frequentava. "Em 68 ele ingressou nessa escola de samba. Esse livro é uma homenagem ao meu pai porque desde criança eu escrevia poesia e dava de presente a ele, que guardava todas. Eu nunca imaginei escrever um livro, mas meu pai sempre acreditou que eu faria isso um dia, então, depois de sua partida, eu decidi fazer essa homenagem a ele e a mim."
Nascido no bairro de Realengo, Zona Oeste do Rio, Wilson Moreira sempre foi apaixonado por samba desde criança. Em 1968 passou a colaborar com a Portela, onde fez história na ala dos compositores. Lá, ele encontrou grandes parceiros que se tornaram amigos, como Paulinho da Viola, Candeia, Natal da Portela e muitos outros.
 
Desde a morte de seu pai, o compositor Zé Keti (1921-1999), a produtora cultural Geisa Keti se movimenta para preservar a sua obra. "Eu procuro atuar dentro de todas as possibilidades que encontro. Em 2000 tentei solicitar uma lona cultural aqui para o bairro do Engenho da Rainha. A ideia era fazer um movimento cultural, mas não conseguimos, então fiz uma inscrição em um edital de cultura e consegui ganhar um ponto de cultura Zé Keti".
 
O ponto de cultura foi colocado na Escola de Samba Boêmios de Inhaúma. "Atuamos nessa escola por dois anos, ministrando aula de música, percussão, grupo de teatro, aula de canto e coral e aula de flauta".
 
Por falta de condições estruturais da escola, não houve apoio e o projeto teve que ser encerrado. Geisa montou um grupo com filhas de músicos da Portela, o Herdeiras do Samba. Há pouco tempo também, seu marido, o advogado e mangueirense ilustre Onésio Meirelles, escreveu um livro com as histórias de Zé Keti.