Pelo que a memória me ajuda, o último gurufim que eu tive conhecimento foi durante o velório do inesquecível ator, compositor e figura espetacular Mário Lago. Foi em 30 de maio de 2002
Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA. - Daniel Castelo Branco
Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA.Daniel Castelo Branco
Foi lá pelos idos de 1964, no lugar chamado de Mantiqueira, bem na subida da serra para Petrópolis, (os moradores chamavam de Mantiquira,) lugarejo localizado nos fundos da antiga Fábrica Nacional de Motores, a "Fenemê", para os antigos, que escutei a história que vou tentar contar agora.
Estava trabalhando em um caso misterioso, na ocasião, quando parei em uma tendinha para descansar e acabei escutando uma conversa alheia. Hoje, a localidade foi engolida por Xerém (tem um cantor que badalou o local. Lembram ? Zeca Pagodinho, gente !) Vou avisando, entretanto, que não sei se é verdade. Ainda se praticava o gurufim naquelas bandas (e em outras dezenas de locais).
O costume foi adotado, segundo os mais antigos e letrados, porque as pessoas morriam de doenças conhecidas como nó nas tripas, ventre virado, e outras tantas que nos afligiam desde os tempos que mulheres não podiam andar de bicicleta. Mas, as famílias faziam velórios em casa, e deveriam durar, pelo menos, 24 horas. Primeiro, que deveriam tirar qualquer dúvida de que o morto estava, de fato, morto e não estava desmaiado.
Segundo, porque não havia meios de comunicação eficiente para que todos os parentes e amigos pudessem ser avisados da passagem do morto. E, por último, para se aguentar um velório tão longo, inventariam o gurufim: maneira de se passar o tempo enquanto espantavam a tristeza, o sono e ainda matavam (desculpem o termo) a fome nas longas horas. Sim, tudo com samba, cachaça e tira-gosto.
Pelo que a memória me ajuda, o último gurufim que eu tive conhecimento foi durante o velório do inesquecível ator, compositor e figura espetacular Mário Lago. Foi em 30 de maio de 2002. A família decidiu que não iria chorar a morte mas, simplesmente, celebrar a vida do saudoso Mário. Houve um ensaio de gurufim, também, no velório de João Rubinato, o eterno Adoniran Barbosa.
Mas, para não ter que enrolar muito, vou direto ao episódio principal deste causo. Eu estava bebendo uma cerveja, quase gelada, em uma tendinha na pracinha da Mantiqueira. Ao meu lado, quatro senhores com uniformes de operários da fábrica de caminhões, bebiam aguardente e conversavam sobre a morte de um companheiro deles, naquela semana. Ninguém chorava, ninguém sorria.
Conversavam normalmente e o que aparentava ser o mais velho explicava como procedeu para organizar o gurufim do companheiro. "Tava fazendo frio naquela noite do velório. O defunto estava na sala e o silêncio incomodava, deixando apenas aparecer os soluços da viúva e o zumbido dos mosquitos", foi explicando o senhor.
"Bolas, comecei a passar o chapéu para arranjar dinheiro e comprar bebidas e mortadela. Ah, tinha que comprar mais velas para iluminar a sala e o morto", explicava o homem. "Arrecadei uns trocados e já ia saindo para procurar um boteco aberto quando, sem eu esperar, a viúva me puxou pelo braço e esticou uma nota de cinco cruzeiros. Fiquei sem jeito de pegar o dinheiro dela", disse o senhor.
Bom adiantar que, por aqui, capital da República, nas primeiras favelas que surgiam nos morros da cidade, o gurufim era prática normal. Nélson Cavaquinho, que descanse em paz, chegou a me contar de vários que ele frequentou, sempre enaltecendo o detalhe: "Não faltava bebida, comida e choro", fazendo um trocadilho fenomenal, misturando o lamento com o rítmo musical.
Voltando à Mantiqueira, mais uma rodada de cachaça, todos ansiosos pelo fim da história. Claro, eu também. Mas, o homem que falava não tinha pressa. Levantou, foi ao banheiro, demorou e, na volta, trazia um pratinho de papelão com uns bolinhos não sei de que. E perguntou: "Onde eu parei, gente?"
"Parou na viúva oferecendo dinheiro!", exclamou o mais novo de todos. "Ah, lembrei. Tive que falar a verdade para ela e, ainda poupei o dinheirinho da viúva, né ?", explicou. Se ajeitou no banco e falou, depois de mordiscar o bolinho e empurrar uma outra dose daquele líquido incolor. Solenemente, cheio de dignidade, mandou o 'gran finale': "Olha, senhora, não precisamos do seu dinheiro. A senhora tá isenta". Já ajudou bastante, dando a casa e o morto.
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