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Água Santa está de luto. Viva Elza!

Tenho a alegria de ter conhecido a mulher valente, lavadeira, pé no chão, que ganhou o mundo como Elza Soares. A voz dela, amigas e amigos, eu conheci bem cedo, antes de muita gente

Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA.Daniel Castelo Branco

Demorei mais de 20 anos para reencontrar Elza. Ela estava casada com Mané e eles moravam em uma casa enorme em Jacarepaguá. Eu, na Freguesia, na Rua Rugendas, bem na descida da Grajaú-Jacarepaguá. E fui fazer uma matéria com eles para um jornal.
Bem, na verdade, já conhecia os dois. Ela, quando lavava roupas de uma tia-avó, aqui na Rua Borja Reis. Eu era um garoto, início dos anos 1950, calça curta, suspensório, espinhas no rosto. Já ele, via sempre em São Cristóvão, acompanhada de um compadre que trabalhava numa fábrica na Rua Antunes Maciel e vinha jogar no bicho em um dos pontos do meu avô postiço. Fui reencontrá-lo no Botafogo, quando fui designado para cobrir o clube pelo meu chefe, o Mario Vale, no início dos anos 1960.
Mas, o reencontro com ela foi inesquecível. Eu não tinha cara de pau em falar que Elza foi lavadeira da tia. Mas ela, no decorrer do papo, mandou na lata: "Tá pensando que eu não lembro? O nome da tia era Carmen, que morava em um casarão antigo, grande, no
alto da rua. E você estava sempre aprontando!". Ela me deixou embasbacado com a demonstração de humildade e franqueza.
Mané, que era chamado por ela de Neném, caiu na risada. Pronto, tudo ficou mais fácil aqui pro velho repórter, na época, claro, novo repórter. A conversa rendeu quase um dia inteiro, com recordações, tantos detalhes, de fatos e intimidades da juventude dela e do Mané.
Ela não bebia. Bem, eu e ele... Saí do encontro meio zambeta e esqueci documentos, bloco de anotações da entrevista, óculos e sei mais o que. Mas, Elza, havia anotado meu endereço, no mesmo bairro de Jacarepaguá. No dia seguinte, Mané bateu na minha porta, cedinho. Trouxe tudo o que eu deixara esquecido na casa deles. Pronto, outra confraternização.
A simplicidade de Elza era de fazer inveja. Eu me considero um pé no chão. Ela era muito mais. E, amigas e amigos, que memória. Falou nomes das freguesas que ela atendia, na lavagem de roupas, aqui da Água Santa. Nomes que eu não lembrava mais. Acreditem, ela falou até o nome do falecido marido da tia-avó, um funcionário civil do Ministério da Guerra, "o seu Barbosa". Pô, depois dessa, tive que aceitar mais uma bebidinha.
Eu e Neném. E ele passou a frequentar minha casa, tudo em função de passarinhos. A área onde eu morava era de matas. Mané adorou. E, no meio do caminho, antes das trilhas, havia uma tendinha. Pronto, danou-se. Evidente que Elza deu um senhor esporro em nós dois. Bem merecido, concordo.
Em uma dessas idas às matas, depois da tendinha, Mané me contou que, como na casa deles havia os filhos de Elza e sempre mais alguns agregados, ele pretendia abastecer a piscina com água do mar: "Melhor do que enfiar todos em um carro para ir à praia...". Mas, Elza não deixou. Fez muito bem. Lembro que escrevi a entrevista do casal e, Elza e Mané gostaram. Eu simplesmente omiti, para vocês, amigos que leem essas mal traçadas linhas, que tive que voltar para esclarecer mais detalhes da entrevista. Porque ?
Ora, eu não conseguia entender minha letra no bloco de anotações. Tudo resolvido. Elza e Neném tiveram paciência e entenderam o meu problema. Que ótimo.
Anos depois, Garrincha havia se afastado do Botafogo, vivia fazendo jogos de exibição pelo Brasil afora. O casamento deles havia acabado devido ao problema com o álcool de Mané - que chegou ao ponto de agressões físicas - mas desta união surgiu o único filho homem de Neném com Elza. O menino morreu em um colisão com carro que Garrincha dirigia. Mais uma trombada na vida de Elza, a guerreira.
Hoje em dia, por essas bandas do bairro, ainda sobrevivem uns poucos velhos moradores que lembram dela, meninota, lavando roupas para sobreviver. O amigo, e parceiro Adilsinho, cria do bairro, chegou a fazer homenagem à Elza no Facebook que ele criou, em dezembro de 2020. E, aqui no bairro era a Elza, aliás com o sobrenome de Gomes da Conceição. E que virou Soares, após o casamento imposto pelo pai.
Tenho a alegria de ter conhecido a mulher valente, lavadeira, pé no chão, que ganhou o mundo como Elza Soares. A voz dela, amigas e amigos, eu conheci bem cedo, antes de muita gente. Aliás, eu tive a honra de ouvir aquela voz sobressaindo do água batida em um tanque, improvisado, acima da espuma do sabão. Viva Elza guerreira da Água Santa.
Lembro que, antes da cantora, o ídolo da área foi o Juvenal, que jogou no Botafogo. E a vizinha Aracy de Almeida, no Encantado. Ainda tivemos o jogador Alfinete, também o Zé Mário (na Chave de Ouro) e a contemporânea de Elza, a Alaíde Costa. No presídio ainda passaram moradores temporários quase ilustres. Mas eles não contam. Hoje mesmo, conversando com amigos pelo telefone, vieram os papos sobre a mulher, magra, franzina, que escondia a força da negra que driblou as amarguras que surgiram ao longo da sua história.
Agora mesmo, estou cantarolando algumas das músicas daquela época, escutando a voz dela, enquanto carregava água em uma lata apoiada na cabeça. Ah, ela usava o ferro maxambomba, movido a carvão, para vincar as calças de linho, com goma, do marido da tia-avó. Lembram do ferro ? E da goma?
A data para ela passar para outra vida, parece que estava combinada: a morte do cara que ela dizia, sempre, que foi o grande amor que teve por aqui: a do Neném. A Água Santa está de luto.

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Água Santa está de luto. Viva Elza!

Tenho a alegria de ter conhecido a mulher valente, lavadeira, pé no chão, que ganhou o mundo como Elza Soares. A voz dela, amigas e amigos, eu conheci bem cedo, antes de muita gente

Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA.Daniel Castelo Branco

Demorei mais de 20 anos para reencontrar Elza. Ela estava casada com Mané e eles moravam em uma casa enorme em Jacarepaguá. Eu, na Freguesia, na Rua Rugendas, bem na descida da Grajaú-Jacarepaguá. E fui fazer uma matéria com eles para um jornal.
Bem, na verdade, já conhecia os dois. Ela, quando lavava roupas de uma tia-avó, aqui na Rua Borja Reis. Eu era um garoto, início dos anos 1950, calça curta, suspensório, espinhas no rosto. Já ele, via sempre em São Cristóvão, acompanhada de um compadre que trabalhava numa fábrica na Rua Antunes Maciel e vinha jogar no bicho em um dos pontos do meu avô postiço. Fui reencontrá-lo no Botafogo, quando fui designado para cobrir o clube pelo meu chefe, o Mario Vale, no início dos anos 1960.
Mas, o reencontro com ela foi inesquecível. Eu não tinha cara de pau em falar que Elza foi lavadeira da tia. Mas ela, no decorrer do papo, mandou na lata: "Tá pensando que eu não lembro? O nome da tia era Carmen, que morava em um casarão antigo, grande, no
alto da rua. E você estava sempre aprontando!". Ela me deixou embasbacado com a demonstração de humildade e franqueza.
Mané, que era chamado por ela de Neném, caiu na risada. Pronto, tudo ficou mais fácil aqui pro velho repórter, na época, claro, novo repórter. A conversa rendeu quase um dia inteiro, com recordações, tantos detalhes, de fatos e intimidades da juventude dela e do Mané.
Ela não bebia. Bem, eu e ele... Saí do encontro meio zambeta e esqueci documentos, bloco de anotações da entrevista, óculos e sei mais o que. Mas, Elza, havia anotado meu endereço, no mesmo bairro de Jacarepaguá. No dia seguinte, Mané bateu na minha porta, cedinho. Trouxe tudo o que eu deixara esquecido na casa deles. Pronto, outra confraternização.
A simplicidade de Elza era de fazer inveja. Eu me considero um pé no chão. Ela era muito mais. E, amigas e amigos, que memória. Falou nomes das freguesas que ela atendia, na lavagem de roupas, aqui da Água Santa. Nomes que eu não lembrava mais. Acreditem, ela falou até o nome do falecido marido da tia-avó, um funcionário civil do Ministério da Guerra, "o seu Barbosa". Pô, depois dessa, tive que aceitar mais uma bebidinha.
Eu e Neném. E ele passou a frequentar minha casa, tudo em função de passarinhos. A área onde eu morava era de matas. Mané adorou. E, no meio do caminho, antes das trilhas, havia uma tendinha. Pronto, danou-se. Evidente que Elza deu um senhor esporro em nós dois. Bem merecido, concordo.
Em uma dessas idas às matas, depois da tendinha, Mané me contou que, como na casa deles havia os filhos de Elza e sempre mais alguns agregados, ele pretendia abastecer a piscina com água do mar: "Melhor do que enfiar todos em um carro para ir à praia...". Mas, Elza não deixou. Fez muito bem. Lembro que escrevi a entrevista do casal e, Elza e Mané gostaram. Eu simplesmente omiti, para vocês, amigos que leem essas mal traçadas linhas, que tive que voltar para esclarecer mais detalhes da entrevista. Porque ?
Ora, eu não conseguia entender minha letra no bloco de anotações. Tudo resolvido. Elza e Neném tiveram paciência e entenderam o meu problema. Que ótimo.
Anos depois, Garrincha havia se afastado do Botafogo, vivia fazendo jogos de exibição pelo Brasil afora. O casamento deles havia acabado devido ao problema com o álcool de Mané - que chegou ao ponto de agressões físicas - mas desta união surgiu o único filho homem de Neném com Elza. O menino morreu em um colisão com carro que Garrincha dirigia. Mais uma trombada na vida de Elza, a guerreira.
Hoje em dia, por essas bandas do bairro, ainda sobrevivem uns poucos velhos moradores que lembram dela, meninota, lavando roupas para sobreviver. O amigo, e parceiro Adilsinho, cria do bairro, chegou a fazer homenagem à Elza no Facebook que ele criou, em dezembro de 2020. E, aqui no bairro era a Elza, aliás com o sobrenome de Gomes da Conceição. E que virou Soares, após o casamento imposto pelo pai.
Tenho a alegria de ter conhecido a mulher valente, lavadeira, pé no chão, que ganhou o mundo como Elza Soares. A voz dela, amigas e amigos, eu conheci bem cedo, antes de muita gente. Aliás, eu tive a honra de ouvir aquela voz sobressaindo do água batida em um tanque, improvisado, acima da espuma do sabão. Viva Elza guerreira da Água Santa.
Lembro que, antes da cantora, o ídolo da área foi o Juvenal, que jogou no Botafogo. E a vizinha Aracy de Almeida, no Encantado. Ainda tivemos o jogador Alfinete, também o Zé Mário (na Chave de Ouro) e a contemporânea de Elza, a Alaíde Costa. No presídio ainda passaram moradores temporários quase ilustres. Mas eles não contam. Hoje mesmo, conversando com amigos pelo telefone, vieram os papos sobre a mulher, magra, franzina, que escondia a força da negra que driblou as amarguras que surgiram ao longo da sua história.
Agora mesmo, estou cantarolando algumas das músicas daquela época, escutando a voz dela, enquanto carregava água em uma lata apoiada na cabeça. Ah, ela usava o ferro maxambomba, movido a carvão, para vincar as calças de linho, com goma, do marido da tia-avó. Lembram do ferro ? E da goma?
A data para ela passar para outra vida, parece que estava combinada: a morte do cara que ela dizia, sempre, que foi o grande amor que teve por aqui: a do Neném. A Água Santa está de luto.

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