Tem mais de trinta anos. Eu morava sozinho aqui na caverna, ainda não haviam inventado o tal de wifi. Nem a tal da Internet. Usávamos cartas ou, em casos urgentes, apelávamos para telegramas. Ou o velho telefone. Então, acho que vão concordar, a vida era quase mais devagar. Não lembro muito bem, mas acredito que ainda existia 'A Voz do Brasil' em todas as emissoras de rádio. Parece que o "programa" era transmitido diariamente às 19h (ou às 20h?).
Bem, o negócio é o seguinte: todo amigo que se separava da patroa pedia asilo aqui em casa. O Bob Bola de Fogo foi um deles. Assim como o Ricardo Pouco Som, e outros tantos. Teve até um, que Deus o tenha, o fotojornalista Joel Cruz Credo (ele morreu aqui, no quarto de hóspedes, enquanto eu preparava o jantar). Ih, lembranças tristes. Sempre fiquei preocupado — já pensaram se uma das mulheres, em caso de separação conjugal, viesse pedir asilo aqui, também?
Bem, o caso que pretendo lembrar aconteceu com o Bob Bola de Fogo. Bacharel em Direito, detetive da polícia do Rio de Janeiro, era um homem tranquilo, tocador de violão, e acabou morando aqui na caverna.
Sujeito calmo, pediu asilo porque a filha resolveu morar com ele. Então, deixou a casa para ela e veio ocupar o quarto de hóspedes. Bob nem andava armado. Quantas vezes saímos andando até a estação ferroviária do Engenho de Dentro para, de trem, ir até Campo Grande. Dois coroas, com pouco dinheiro, tentando chegar até Sepetiba. Juntamos o pouco dinheiro e as folgas no trabalho para espairecer à beira-mar. Bob conhecia o dono do trailer em Sepetiba e, por isso, pendurávamos a despesa. Quando a grana dos pagamentos saíam, era a desculpa para voltarmos até lá para pagar o que devíamos.
Então, nada melhor do que usar, sempre, os fins de semana para o "tour rural" (bom lembrar que, naquela época, de Campo Grande em diante, tudo era Zona Rural). Uma semana com dinheiro e três outras durinhos da silva. Bob era um cara organizado. Ele tinha um mapa das dívidas e obrigações monetárias. Chegou até a quitar minha dívida com a conta da Cedae que esqueci de pagar.
Bom lembrar que, um belo dia, um motoqueiro da Cedae chegou no portão e avisou que estava ali para cortar o fornecimento da água. Esqueci de pagar! Bob usou da sua diplomacia peculiar. Convidou o rapaz para entrar, mostrou o local do registro da água e ofereceu um copo de cerveja (com tira-gosto). O motoqueiro, acostumado a enfrentar resistências, ficou pasmo com a boa recepção.
Neste dia, estávamos tentando fazer uma feijoada, na lenha, usando uma panelão tipo daqueles do Exército. O rapaz da moto não resistiu à tentação do cheiro gostoso que emanava no ambiente. Aceitou um prato, fundo, e caiu dentro. Cerveja, feijoada e muita conversa. Bob era um diplomata. Eu? Nem me meti na conversa. Casa de solteiro, pouquíssimos utensílios, Bob usou o único prato fundo para servir o motoqueiro. O rapaz, acho eu, nunca foi tão bem recebido diante da missão difícil de cortar o fornecimento do líquido precioso. E caiu dentro do feijão e da cerveja.
Mas, aí, entrou o bom senso do Bob. Quando notou que o rapaz estava meio mareado, acionou a mangueira com água. E mandou ver! O cara pulou, esperneou, reclamou, xingou e, por fim, acalmou. Bob, velho malandro, enxugou o rosto e forneceu roupas secas. Um parêntesis: esqueci do Zero (Zero é o José Roberto, caixa do antigo Banerj, flamenguista doente, brizolista muito mais, sócio contribuinte do clube — vocês conhecem alguém que é sócio do Fla e paga em dia? Pois o Zero pagava. Bem, o Zero sempre chegava aqui na caverna nos dias da feijoada. O faro dele era mais apurado do que qualquer felino. Comia pouco. Bebia demais.
Das três filhas, acho que somente a primogênita, a Claudia, conheceu um dos personagens desse lamento que trago agora. Foi o Joel Cruz Credo. O cara mais azarado que conheci. E era o mais bem humorado. O mais organizado foi o Bob Bola de Fogo. O pão duro, ainda vivo, é o Ricardo. Eu? Vou vivendo por aqui, na caverna, conversando com vocês pelo jornal e pelo tal do zap. Vez por outra, os amigos chegam para um papo no quintal. Bom ter amigos. Ah, quase esqueci de mandar abraços a todos que ainda estão vivos. E aos que estão mortos, também.
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