João Batista Damasceno: O poder constituinte e as Forças Armadas
Pretender atribuir qualidade de poder moderador às Forças Armadas implicaria reconhecer-lhe a qualidade que não lhe foi atribuída pela Constituição em sua redação originária e implicaria violação ao princípio da separação dos poderes, considerando que servidores não constituem poder do Estado
A compreensão do papel das Forças Armadas na ordem institucional brasileira demanda análise da natureza das suas funções e dos cargos ocupados pelos servidores públicos que a compõem. Leituras superficiais e comprometidas com interesses não democráticos têm levado a interpretações enviesadas do Art. 142 da Constituição da República. Para compreensão dos limites de atuação de tais servidores faz-se necessária análise do texto constitucional aprovado em 1988 e das modificações decorrentes de emendas.
A Constituição de 1988 foi elaborada por uma Assembleia Nacional Constituinte que, embora não tivesse sido exclusiva, funcionou distintamente em relação às Casas do Congresso Nacional. De 1987 a 1988 tivemos em funcionamento autônomo o Senado Federal, a Câmara dos Deputados, o Congresso Nacional decorrente da reunião conjunta das duas Casas e, soberanamente, a Assembleia Nacional Constituinte.
A Constituição, elaborada por um poder originário que constituiu o Estado e suas instituições, previu a possibilidade de sua reforma, mas ressalvou matérias insuscetíveis de modificações, ou seja, as cláusulas pétreas ou núcleo inalterável da Constituição. Diz a Carta Magna que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
No texto original, os servidores públicos militares das Forças Armadas, das polícias militares e bombeiros militares estavam no capítulo que trata da Administração Pública. O Art. 37 estabeleceu normas gerais para a Administração Pública, os Artigos 39 a 41 tratou dos servidores públicos civis e o Art. 42 tratou dos servidores públicos militares.
Em sua redação original a Constituição qualificava os integrantes das Forças Armadas como servidores públicos da Administração e não agentes políticos do Estado. O constituinte originário não atribuiu às Forças Armadas qualidade de poder de Estado, pois estavam textualmente inseridos no capítulo que trata da Administração Pública. Seus agentes são servidores públicos regidos por estatuto próprio.
A Emenda Constitucional 18, de 5 de fevereiro de 1998, deslocou o disciplinamento das Forças Armadas para título próprio, sem lhes retirar a natureza de servidores públicos. E não poderia mesmo fazê-lo. O poder constituinte originário autorizou o Congresso Nacional a alterar o texto constitucional, por meio de emendas, mas ressalvou determinadas matérias que não podem ser objeto de modificação, dentre elas a separação dos poderes. Pretender atribuir qualidade de poder moderador às Forças Armadas implicaria reconhecer-lhe a qualidade que não lhe foi atribuída pela Constituição em sua redação originária e implicaria violação ao princípio da separação dos poderes, considerando que servidores não constituem poder do Estado.
Os servidores públicos são agentes da Administração Pública encarregados de executar os comandos determinados pelos órgãos e agentes políticos do Estado. Um servidor público ocupa cargo e desempenha atribuições no âmbito da Administração Pública, seja civil ou militar. Servidores públicos não podem pretender se sobrepor aos poderes a que estão subordinados.
‘Ne sutor ultra crepidam’ é uma expressão latina, bem ao gosto dos juristas, que significa, literalmente, “Não vá o sapateiro além das sandálias”. A frase, atribuída por escritores romanos ao pintor Apeles, da cidade grega de Kós, que viveu no século IV a.C., narra a história de um sapateiro que se dirigira ao artista apontando defeito na versão artística de uma sandália. O artista prontamente corrigiu o erro. Incentivado pela contribuição que dera à obra artística o sapateiro logo começou a fazer outras observações, sob suas perspectivas. Apeles interrompeu a impertinência do sapateiro dizendo a que deveria se limitar.
A frase do grego, registrada por romanos, tem sido usada para alertar aqueles que tentam se intrometer em assuntos que estejam além de suas especializações ou atribuições. E neste momento pode ser dirigida aos que pretendam, com armas, aferir a vontade popular, atribuição que a Constituição outorgou à Justiça Eleitoral. Como já disse o ministro Edson Fachin, “quem trata de eleições são forças desarmadas”. A subordinação do estamento armado ao poder civil é um parâmetro de civilidade. Tal como o sapateiro de Kós que pretendeu ir além do seu ofício, não raro, ao longo da história, com o uso da força, a parcela armada tende a querer subordinar o remanescente da sociedade civil, ampliando o seu campo de atuação.
Assim como fez Apeles é preciso delimitar os campos de atuação de cada um. O restabelecimento da redação original do Art. 42 da Constituição da República pode propiciar adequada interpretação do Art. 142. Além disto, outras medidas precisam ser tomadas para incorporar o estamento militar à sociedade brasileira, dentre os quais a mudança do curriculum das escolas e academias militares e a integração dos hospitais militares à rede de hospitais do SUS.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.
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