Foi minha filha que me disse. E foi com ela que sonhei um sonho despertador de memórias.
Era um dia de escola, dia de professora iluminada criar espaços para florescimentos. Disse minha filha que ela contou uma história e, na história, havia uma viagem no tempo. E o tempo da visitação dos viajantes era decidido pelos próprios viajantes.
Cada aluno foi desfilando seus sonhos de um passado que só conheceram pelas imagens derramadas de outros viajantes há mais tempo.“Mamãe, eu viajaria no tempo em que minha avó ainda estava aqui. Você diz tanta beleza sobre ela. Eu queria ter conhecido”. Meus olhos emprestaram lágrimas para que minha alma dissesse a emoção. E disse. Chorei abraçando Ana e agradecendo o existir com ela.
Minha mãe se foi três meses antes do seu nascimento. Em pouco tempo, experimentei o tempo da dor e da alegria, da partida e da chegada. No parto, estava só. O pai de Ana nunca esteve. Dia desses, perguntou se eu tinha raiva. Raiva não, tenho pena. Pena dos desperdícios. Nada viu ele da filha. O primeiro cair, o levantar, o engatinhar, o desenhar o belo tão puro contemplado por olhos sem as sujeiras do tempo.
Conheci pouco meu pai. Só lembro o corpo velado na sala - era assim antigamente. Foi quando aprendi a dor. Lembro o choro da minha mãe. As minhas irmãs mais velhas servindo água e café aos conversadores. Lembro o caixão sendo fechado e a procissão lenta para devolver à terra o corpo de meu pai, do pai que não pôde brincar comigo. Diferentemente do pai de Ana, morto por escolha.
Não luto contra o luto. Luto contra minha indisposição de lutar. Quem ama compreende o tempo do luto como um tempo de espera e um tempo de ação. Nem que seja no mundo que mora dentro. O mundo que mora fora pode aguardar.
Ana desfila vida na minha vida. Não sou, entretanto, aguardadora de desfechos decididos por mim. Compreendi, desde cedo, que a dor se cura vivendo e que a vida é percurso de cada um. Só espero de minha filha que seja boa. Consigo mesma e com os outros. Que suas escolhas sejam generosas. Temo os exageros, os descompassos entre o pensar e o sentir, as portas trancadas para o amor.
Viajar para o tempo de minha mãe foi um presente que ela me deu. Quisera eu ter esta fotografia. Minha mãe, eu e minha filha. Talvez tenha. Os tempos, sabemos pouco deles. No mistério do amor, damos vida a vidas que nossos olhos não podem ver. Talvez possam. Basta fecharmos. Basta abrirmos.
Sobre o sonho que tive dormindo, não é diferente do que sonho acordada. O fio que me prende à frágil vida é o forte fio do amor. É nele que me fio para educar minha filha e a mim mesma. Para trabalhar e para sorrir de circunstâncias simples do meu cotidiano. Se eu pudesse viajar, a viagem da saudade viajaria para onde estou agora. Agora, onde a memória de tantos tempos jorra amor em mim.