Rio - A médica Gisele Cardoso Nery dos Santos disse nesta quarta-feira, em seu depoimento na 53ª DP (Mesquita), que o DIA teve acesso, que a recusa no atendimento que gerou a confusão mostrada em vídeo e que acabou em sua prisão por desacato, ocorreu porque os três suspeitos baleados que chegaram na UPA de Cabuçu, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, já estavam mortos.
No seu depoimento, Gisele narra que os policiais chegaram nervosos e insistiam para que ela atendesse as vítimas baleadas. Ela afirmou que o trio chegou sem vida à UPA e que tentou explicar aos PMs, que estavam exaltados, que não poderia ficar com eles porque o necrotério só tinha vaga para mais um corpo.
Por conta da insistência, a médica disse que entrou em contato com o diretor da unidade para saber o que deveria ser feito. Neste momento, os PMs colocaram a vítima, que havia sido levada para dentro da UPA, de volta na caçamba da viatura e foram para o Hospital Geral de Nova Iguaçu com os três corpos. Procurada pelo DIA, Gisele disse que não se pronunciaria, por enquanto, sobre o caso.
Na delegacia, Gisele afirmou que em nenhum momento se recusou a dar identificação aos policiais e que tentaram algemá-la quando ela se afastou para falar ao telefone por causa da falta de sinal. Um dos policiais, identificado como Christiano Vicente Castro, tentou agredí-la com um soco, segundo a médica, e funcionários da UPA impediram.
Gisele admitiu que chamou o policial de "animal" por conta do jeito que estava sendo tratada, mas que em nenhum momento teve a intenção de agredir os PMs fisicamente ou verbalmente.
O Hospital Geral de Nova Iguaçu, para onde os três feridos acabaram sendo levados, afirma que eles chegaram mortos à unidade. Já a Secretaria Estadual de Saúde ainda não informou se os suspeitos chegaram vivos ou não à UPA de Cabuçu.
A reportagem teve acesso também aos depoimentos dos policiais Alex Sandro Figueiredo de Oliveira e Christiano Vicente Castro. Segundo o relato, eles chegaram à UPA por volta de 1h com os três baleados. Os PMs contaram que as vítimas 'ainda respiravam' quando foram socorridas.
Os militares afirmam que os baleados foram feridos em confronto na Comunidade Grão Pará durante patrulhamento à 0h20 de terça-feira e que chegaram à UPA de Cabuçu à 1h. Na ação foram apreendidas duas pistolas, uma submetralhadora e drogas. O caso foi inicialmente registrado na 53ª DP, que era a central de flagrantes durante a madrugada.
Eles contam no depoimento que havia apenas uma maca na unidade, por isso somente um dos feridos foi levado por uma enfermeira para dentro da unidade. Ambos disseram que Gisele afirmou que não iria atender os feridos porque um deles estava morto. Ela teria mandado então que a vítima fosse retirada da UPA e que era que fossem levados para o Hospital da Posse.
De acordo com eles, foi nesse momento que começou a discussão que culminou em agressão. Alex contou que levou uma unhada no rosto e Cristiano disse que está com marcas de unha nos braços. Os policiais contaram ainda que Gisele estava muito exaltada, que os chamou de "animais" e que, nesse momento, deram voz de prisão a ela. Apenas Christiano foi atendido no Hospital de Nova Iguaçu com algumas escoriações e hematomas leves e liberado em seguida.
Procurada, a PM não informou o porquê dos policiais levarem os três homens para a UPA de Cabuçu e não para a unidade referência da região, o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Na nota enviada à reportagem, a corporação diz que os três "foram atendidos no Hospital Geral de Nova Iguaçu".
Presidente do Cremerj: 'Agressão absurda, desnecessária'
O presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio (Cremerj), Nelson Nahon, criticou a postura da PM. Uma sindicância vai apurar o caso. "O que assistimos é uma agressão absurda, desnecessária, de um policial a uma médica de plantão numa UPA", disse.
Ele disse que conversou com a médica, funcionários da UPA e do Hospital Geral de Nova Iguaçu. Nahon reafirma a informação de que os três baleados já chegaram mortos na unidade de pronto-atendimento.
"Ela não recusou o atendimento em nenhum momento. Só que eles já estavam mortos e, em casos de morte violenta, a médica não pode de jeito nenhum dar um atestado de óbito. O corpo tem que ser encaminhado para o Instituto Médico Legal (IML) para ser feita a necrópsia e atestar qual a causa da morte", explicou.
"O vídeo mostra claramente que ela não agrediu ninguém . É ingênuo achar que uma médica em seu posto de trabalho, atendendo as pessoas, agrida alguém. Enquanto havia aquela discussão com dois policiais, o camburão já tinha até saído da UPA e seguido para o Hospital de Nova Iguaçu", contou.
O presidente do conselho dos médicos lamentou os recentes episódios violentos envolvendo profissionais de saúde do Rio. "No domingo, um médico foi sequestrado no seu local de trabalho. Agora, uma médica agredida por um policial. Isso tudo na semana do médico. Hoje, dia 18, é Dia do Médico. Isso é um absurdo", falou.
Secretaria de Saúde pedirá explicações à UPA
Em nota, a Secretaria de Estado de Saúde (SES) esclarece que a orientação aos profissionais é que todas as pessoas — independentemente do estado de saúde — devem ser atendidos nas unidades da rede estadual. Questionada sobre os pacientes estarem mortos, a SES ainda não se pronunciou.
A SES vai pedir explicações à organização social que administra a UPA Cabuçu para saber se houve recusa no atendimento aos baleados. Após a averiguação, caso seja necessário, tomará as medidas cabíveis em relação à profissional da unidade.
A secretaria também lamentou o ocorrido e disse que acredita "que os momentos de grande estresse que fazem parte do cotidiano dos profissionais tanto da Segurança quanto da Saúde podem ter gerado a discussão que acabou registrada no vídeo."