Em 1997, barracos já haviam dado lugar às construções de alvenaria, na beira da Lagoa da Tijuca
 - ARQUIVO PESSOAL/ MÁRIO MOSCATELLI
Em 1997, barracos já haviam dado lugar às construções de alvenaria, na beira da Lagoa da Tijuca ARQUIVO PESSOAL/ MÁRIO MOSCATELLI
Por O Dia

Rio - As palafitas erguidas sobre o manguezal e a vegetação de taboa que preenchia o espelho d'água da Lagoa da Tijuca ocupam hoje somente as lembranças dos moradores mais antigos da Favela da Muzema, no Itanhangá, bairro da Zona Oeste. A comunidade, que começou a ser timidamente ocupada, em 1970, só tomou forma no fim da década seguinte, quando uma parte da própria lagoa foi aterrada para dar lugar ao primeiro loteamento irregular dali. Começava, assim, a ser erguido o local que recebeu a atenção de todo o Brasil depois que duas construções irregulares desabaram, deixando pelo menos 22 moradores mortos, no último dia 12.

De Minas Gerais, do Espírito Santo, da Paraíba, do Ceará, da Bahia. O importante era chegar ao Rio para trabalhar, garantir o sustento da família e mandar o que sobrasse para a terra natal. "Meu pai veio para construir um condomínio na Barra e depois virou porteiro. Viemos com ele do Maranhão. Estavam surgindo vários prédios e a gente vinha feliz da vida. Por mais que aqui fosse difícil, tinha emprego e comida. Lá não!", relembra a dona de casa Luciana dos Santos, de 50 anos. Começava o boom imobiliário da Barra da Tijuca e era necessário mão de obra barata ali, coladinha no bairro abastado, para satisfazê-lo.

O local do desabamento, área onde antes era uma pedreira, foi alvo de especulação imobiliária ao longo dos últimos dez anos - Reginaldo Pimenta / Agencia O Dia

A vizinha Rio das Pedras já recebia cada vez mais caminhões de entulho para aterramento da faixa da Lagoa da Tijuca que lhe cabia. A novata Muzema caminhava a passos lentos. Seu primeiro aterro só chegou em 1986, dez anos depois da construção da principal via da região, a Avenida Engenheiro Souza Filho. "Quando eu cheguei, em 1972, só tinham uns dez moradores. Praticamente tudo era lagoa e brejo. Tinham algumas palafitas. Depois, tudo foi sendo aterrado e crescendo cada vez mais", lembra a pernambucana Maria das Dores de Souza, de 62 anos.

Era o pontapé inicial para o fluxo intenso de migrantes. O solo de manguezal que circundava o espelho da lagoa, não suportava peso. Mas não deixou de ser o solo onde se sustentaram barracos. Fez-se, então, o Cambalacho, o primeiro loteamento da Muzema, cujo nome era uma referência à novela de Sílvio de Abreu, que também estreava naquele ano.

"No começo não tinha energia elétrica e pegávamos água daquela floresta perto de onde os prédios caíram recentemente. Mas era água boa. A gente fazia fila, com balde, e buscava para beber e tomar banho", acrescenta Maria das Dores, em referência à localidade conhecida como Bicão — uma grande fonte de água, ao lado de uma pedreira, coladinha ao Maciço da Tijuca. "A gente comia muito caranguejo e goiamuns. Quando trovejava, tínhamos que subir nos bancos, mesas, para fugir, de tanto caranguejo que surgia".

Aos poucos, os goiamuns se tornaram escassos. O novo pedaço de chão fez de sua via principal, a Rua Terezinha Branco, uma homenagem à integrante da Secretaria de Patrimônio da União, que, curiosamente, ajudou os moradores a resistirem ali.

Do outro lado da favela cresceu a Rua Ana Marta, uma mistura dos nomes de outras duas defensoras daquele pedaço de chão. Dona Ana, da Superintendência Regional da Barra e de Jacarepaguá, e Dona Marta, da Pastoral das Favelas. Surgiu nessa mesma época a Capela de Nossa Senhora das Graças.

Ergueu-se Associação de Moradores, o maior ponto de encontro dos muzemenses. Uma vez por mês, chegava o 'leitinho do Sarney'. Era o Programa Nacional do Leite, capaz de perfilar uma multidão. Também eram feitas reuniões sobre tudo que envolvia a comunidade. Mas, na década de 90, toda aquela participação popular foi freada. Era a chegada da polícia mineira, que, anos mais tarde, passou a ser chamada de milícia.

Milícia loteou até área de antiga pedreira

Segundo moradores, depoisque a favela passou a ser dominada por grupos paramilitares, cresceu desenfreadamente. “Aúltima eleição para se elegerum presidente da associaçãode moradores foi em 1993.Desde então, a antiga políciamineira tomou conta”, recordauma moradora que pede paranão ser identificada. “Passarama comandar tudo. E a favela foisó crescendo”, acrescenta ela,referindo-se à direção do Maciço, contrária à Lagoa.

“A pedreira atrás do armazém, de onde vinha nossa água,foi ocupada. Tudo virou prédio.Viramos uma cidade. As pessoas foram comprando os apartamentos baratos para sair doaluguel. Mas não sabiam quenão existia nenhum estudo dosolo. Era tudo muito frágil”.

Uma ‘favela-satélite’ de Rio das Pedras

Autor do livro ‘A Utopia da Comunidade: Rio das Pedras, Uma Favela Carioca’, o sociólogo Marcelo Baumann Burgos explica que a Muzema sempre foi uma espécie de favela-satélite da vizinha Rio das Pedras, em Jacarepaguá, da qual sofre todo tipo de influência — inclusive política. 

“Quando Nadinho — acusado de chefiar a milícia do Rio das Pedras — foi eleito o quinto vereador mais votado do Rio de Janeiro, só conseguiu esse feito graças ao apoio da população das favelas vizinhas. E a Muzema foi uma delas”, relembra. “É uma favela-satélite, mais nova, cujo território é controlado pelo imperialismo da milícia do Rio das Pedras”, argumenta.

Ele relembra ainda que, em 1968, os moradores de Rio das Pedras já se reuniam com o então governador Negrão de Lima, cobrando a manutenção daquele território. “Queriam evitar sua desapropriação. Foram recebidos pelo governador da época e aquilo foi um marco na consolidação daquele lugar”, acrescenta.

Também atraídos pela proximidade com a Barra da Tijuca, os moradores mais novos contam que, depois da tragédia que assolou o lugar, pretendem abandonar de vez a região. É o caso do garçom cearense Damião Vale, de 37 anos. Ele perdeu a mulher, Antônia Vale, vítima do desabamento. Antes de comprar um apartamento na Muzema, viveu por quase 20 anos na Favela da Tijuquinha, vizinha à Muzema, também no Itanhangá.

“Quando cheguei, tinha água, luz e me disseram que era seguro. Eu achava aquele lugar tranquilo, apesar da gente saber como funcionava. Só depois dessa tragédia eu descobri que quebraram uma parte da pedra e construíram o prédio ao redor dela”, explica. “Nunca pude imaginar que algo tão horroroso pudesse acontecer. Minha mulher perdeu a vida e não pretendo voltar à Muzema nunca mais”, conta.

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