A ex-moradora de rua, Luanda de Souza, deu a volta por cima e construiu sozinha a própria casaArquivo pessoal

Rio- "Eu achava que era nada. Hoje, depois que construí sozinha aminha casa, acho que posso tudo", assegura Luanda de Souza, de 48 anos. Depois de viver nas ruas do Rio, na Zona Oeste, por quatro anos, usar crack, maconha e até se prostituir, a cozinheira mudou de vida. A retomada, porém, ocorreu por muito apoio das pessoas que se dedicam ao trabalho e à assistência da população que vive na rua.
No próximo dia 9, 20 ex-moradores de rua vão se reunir em um almoço, em Campo Grande, na Zona Oeste. Eles vão falar sobre o que foi importante para essa conquista. O encontro será promovido a partir de uma parceria entre o CREAS Zilda Arns, órgão da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), e o Projeto Compreensão e Carinho, da Paróquia Nossa Senhora do Desterro.
Segundo Luanda, ela foi para as ruas em um momento de desespero, quando seus filhos gêmeos, de 17 anos, sumiram de casa ao saírem para uma festa com amigos em 2012. Desorientada, ela abandonou as outras três filhas e saiu de casa. "Dormia no papelão, no chão puro, em praças. Vi gente sendo morta do meu lado e achava que também ia morrer. O Marcelo (Marcelo Jaccoud assistente social) me ajudou muito. Ele dizia para não desistir da minha vida. Eu tinha vergonha da minha família me ver naquela situação”, desabafa Luanda.

A ex-moradora de rua conheceu o atual marido na rua, se casou e foi morarem São Paulo. De volta ao Rio, a mãe dela deixou que construísse em cima da casa dela: “Meu marido trabalhou e pagou para bater a laje. Depois, ficou desempregado. Eu ganhei um milheiro de tijolo de uma patroa que fazia faxina para ela. Foi então que comecei a construir sozinha minha casa no ano passado”.
Luanda construiu dois quartos, varanda, sala e cozinha. Mas, com o trabalho dela e do marido recolhendo material para reciclagem, não conseguiu colocar água, luz, piso e embolsar o seu novo lar. “Minha história é de superação e luta. O meu conselho é para que as pessoas não desistam dos seus sonhos”.

E há um exército de pessoas que lutam para que outros moradores de rua também tenham suas vidas reintegradas. Entre eles, o assistente social da SMAS Marcelo Jaccoud, que ajudou Luanda.
“Costumo dizer que nunca tirei ninguém da rua nos meus mais de 20 anos nesse trabalho. Porque nunca peguei ninguém pelo braço e levei para morar na minha casa. Se fizesse isso, poderia reivindicar a autoria do feito. Mas ninguém tira o outro da rua. Cada um constrói o seu caminho. Eu tive a chance de acompanhar centenas de pessoas no seu processo de saída da rua. Em alguns fui um ouvido, em outros indiquei caminhos, também abri portas. Mas, cada um decide por si o que fazer e quando fazer. Vale para todos nós”, explica Jaccoud.
A missão para o bem também levou a médica Bárbara Urquiaga, de 34 anos, escolher a medicina de família para se dedicar. Atualmente, ela é médica do programa Consultório na Rua da Secretaria Municipal de Saúde. Ela e uma equipe da Estratégia Saúde da Família que também conta com um enfermeiro, técnico de enfermagem e agentes comunitários de saúde, vão atrás dos pacientes que vivem nas ruas.
“O Consultório na Rua me faz sentir útil. Todo dia é um desafio. Há muitos casos de problemas respiratórios, suspeita de tuberculose, machucados e atendimentos às gestantes. Já atendi no chão, na praça, debaixo do viaduto, próximo ao esgoto e há o atendimento também na própria clínica”, conta Bárbara.
Vida de pombo
Já Juliana Telles, de 43 anos, ex-servidora pública, decidiu ajudar quem vive nas ruas depois de perder um irmão para o suicídio. Em 2016,acompanhada de uma amiga, resolveu doar caldo de feijão para essa população. Com a sua experiência como assistente da Defensoria Pública, também passou a ajudar esses moradores na regularização de seus documentos. Ela foi ganhando apoio damãe, dos amigos, da família, de conhecidos nas redes sociais e o trabalho cresceu e hoje se consolidou com a ONG A Nova Chance.
Juliana tem uma maneira bem ilustrativa de tentar convencer a saída das ruas. Ela pergunta à pessoa se  quer continuar vivendo como pombos: “Eles vivem de restos, são enxotados e só são vistos quando incomodam”, lamentou. Para Juliana, as pessoas devem olhar com empatia para o outro. “Ninguém está livre de passar por um aperto desses. Enquanto as pessoas ficarem olhando para o próprio umbigo essa situação não vai mudar”, atesta.
A engenheira química Glenda Rodrigues, de 58 anos, também se uniu a um grupo de amigos para ajudar esse público. Eles começaram a se juntar em novembro de 2018 e, hoje, formam o Coletivo Quantico. “Amigos de amigos, sem saber o que faríamos. Estávamos todos preocupados com o aumento da intolerância, do preconceito, do discurso de ódio e desigualdade”.
Desde dezembro de 2020, o grupo faz ações sociais com pessoas em situação de rua, como a distribuição de lanches, kits de higiene, doação de cobertores, chinelos, além de ser oferecido reiki e escuta. “Ser escutado é muito importante. Faz muita diferença. As pessoas em situação de rua por vezes são invisíveis. Sabemos que o que fazemos é muito pouco, leva algum conforto no momento, mas não resolve. Nem de perto ”, pondera Glenda.
O Censo de População em Situação de Rua 2020, na cidade do Rio de Janeiro, feito pela prefeitura, apontou que há 7.272 pessoas (5.871homens e 1.360 mulheres) nesta situação no município. Entre os homens, 4.510são pretos ou pardos. Já as mulheres nessa classificação somam 1.025 pessoas.
Conflito familiares, alcoolismo e perda de renda
Ainda de acordo com o Censo, os três principais motivos que levaram essas pessoas a dormirem na rua ou em unidade de acolhimento foram: conflitos familiares (44.6%), alcoolismo ou uso de drogas (17,7%) e demissão do trabalho ou perda de renda (14,6%).
De acordo com o escritor e ex-morador de rua, Léo Motta, muitas das pessoas que ajudam esse público dedicam parte do seu tempo, sem remuneração alguma. “A população de rua necessita muito de saúde, acesso ao lazer, olhar igual e mãos estendidas da sociedade. Boa parte da sociedade quando pensa nessa população, pensa, primeiramente, em fome, mas vai muito além disso. Essas ações aproximam essas pessoas do desejo de sair dessa realidade. Quem está ali sofre muito coma solidão. E cada movimento a favor deles, fortalece o desejo de mudança de saída daquela realidade. Esse movimento é mais que um atendimento, é amor. Eu saí da população de rua através do amor”, resume Motta.