Mas foi só eu percorrer novamente o corredor e voltar à cozinha para perceber que a sintonia da rádio já havia mudado para o noticiário policial. Uma simbologia da nossa eterna corda bamba entre fantasia e realidadeArte: Kiko

E tudo começou na quarta-feira, contrariando a linda canção ‘A Felicidade’, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Acordei no dia 20, véspera do feriado de Tiradentes, no pós-Páscoa, com o Rio em clima de folia. Na cozinha, o rádio que nunca desliga dava as notícias do trânsito intenso nas principais vias da cidade. E já falava também dos carros alegóricos que tomavam conta da Avenida Presidente Vargas, no Centro do Rio. O clique de uma amiga escritora no Instagram logo nas primeiras horas da manhã mostrava as alegorias da Série Ouro ali naquela região, enquanto esperavam a hora de ganhar vida na Sapucaí ainda naquela noite. A Igreja da Candelária ao fundo completava o cenário do bairro histórico em seu registro.
A rádio também trazia informações de Campinho, na Zona Norte, por conta do desfile na Intendente Magalhães. Passei para o quarto e, na televisão, lá estava ele de novo, o Carnaval, com a programação do Terreirão do Samba. Mas foi só eu percorrer novamente o corredor e voltar à cozinha para perceber que a sintonia da rádio já havia mudado para o noticiário policial. Uma simbologia da nossa eterna corda bamba entre fantasia e realidade.
Naquela manhã, eu me lembrei das minhas fantasias do último Carnaval oficial no Rio, em 2020, quando curti a folia com uma das minhas amigas mais animadas, a Camilla. Durante os últimos dois anos de dura realidade, deixei guardadas numa caixa as minhas duas versões daquela festa. Fui cupido — com direito a um arco e flecha com coração — e também a “menina do anel de lua e estrela”, numa licença poética para a música eternizada na voz de Caetano Veloso. Os dois modelitos contavam com tiaras para o cabelo, brincos enormes, saias e croppeds adaptados, antes de eles terem virado sinônimo de reação feminina através de um meme nas redes sociais.
Fiquei curiosa para saber se as fantasias ainda me serviam, apesar de a balança apontar uns quilos a mais durante a pandemia. Graças ao elástico na cintura, as saias couberam. Afinal, na vida a gente também vai se esticando daqui e dali para dar um jeitinho em algumas situações. A não ser aquelas apertadas demais, que, assim como as roupas, a gente passa adiante.
Pela rede social, li quem entende bem mais do riscado do que eu, no caso o historiador Luiz Antonio Simas. Ele anunciava que estava em modo Carnaval: “Vou ao Sambódromo ritualizar a vida e louvar os nossos mortos. Semana que vem retorno à loucura dos dias anormais”. Assisti também ao clipe oficial da Mangueira, gravado na comunidade, e me lembrei das cenas que vi ao chegar à Sapucaí em 2020: nos arredores da Avenida, baianas faziam os últimos retoques em suas fantasias. Por trás de tanto glamour, há quem faça disso a sua vida.
Neste domingo, enfim, a folia termina e a realidade, que nunca sai de cena, volta ao primeiro plano. Que a fantasia, guardada numa caixa ou em um cantinho da vida, ainda possa nos servir quando dela precisarmos.