Rio - Os tempos de colônia e de capital do Brasil fizeram do Rio de Janeiro a cidade mais rica do país do ponto de vista arquitetônico. As construções de séculos passados espalhadas por todo o município, principalmente no Centro, são um privilégio para os cariocas, mas trazem consigo uma enorme responsabilidade: preservar esses patrimônios históricos para manter o legado cultural intacto. O trabalho de conservar essas evidências do passado no presente é árduo e tem sido intensificado em 2022 para celebrar os 200 anos da Independência, com a restauração de bens materiais tombados que remetem ao período colonial, uma iniciativa da Secretaria Municipal de Conservação (Seconserva).
O reparo desses patrimônios materiais exige cuidado total e deve ser minuciosamente planejado para, ao mesmo tempo em que renova a construção, não alterar seus detalhes originais. Quem explica o processo é a arquiteta Noemia Barradas, vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro: “Quando se trata da preservação, é fundamental que as obras nestas construções sigam rigorosos parâmetros de execução, sendo o menos invasivas possível, preservando suas características principais e promovendo sua conservação e utilização. Através disso, buscam-se a garantia e a preservação do bem e o seu reconhecimento histórico".
A Ponte dos Jesuítas, em Santa Cruz, na Zona Oeste, é o exemplo mais recente de restauração na capital fluminense. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938, ela foi erguida em 1752 sobre o Rio Guandu, servia como passagem para quem transitava entre o interior do estado e a capital e é considerada o primeiro trabalho de engenharia hidráulica no Brasil. Sob a supervisão da Gerência de Monumentos e Chafarizes, as equipes de conservação executaram serviços de raspagem, limpeza e pintura na ponte, além de ações de urbanização e paisagismo no entorno. A obra foi entregue pela prefeitura no dia 26 de novembro e é só mais uma das dezenas realizadas pela Seconserva para o Bicentenário da Independência.
A Ponte dos Jesuítas, em Santa Cruz, foi a reforma mais recente da prefeitura para celebrar os 200 anos da Independência do BrasilRafael Catarcione / Prefeitura do Rio
Entre as restaurações realizadas pela prefeitura, a de maior destaque é a da Quinta da Boa Vista. O espaço, inaugurado em 1803, foi revitalizado por completo, desde asfalto, grama e cadeiras a monumentos importante como as estátuas de Dom Pedro I e Dom Pedro II. A fachada do Museu Nacional, atingido por um incêndio em 2018 e antiga residência da Família Real, também foi reformada. A secretária municipal de conservação, Anna Laura Secco, revelou que o reparo desses patrimônios era uma das prioridades da sua gestão para a celebração dos 200 anos da Independência.
“Quando o prefeito pensou na comemoração do Bicentenário, sua principal preocupação foi com a necessidade de recuperar aqueles monumentos mais importantes da cidade em relação ao tema. Foi a maior concentração de restauração histórica já feita”, disse a secretária.
Ainda como parte da comemoração do Bicentenário, a Praça XV passou por restaurações: os monumentos de Dom João VI, do General Osório e o Chafariz de Mestre Valentim, feito inteiramente em pedra, constituindo um espaço em que as pessoas poderão entrar. Além de toda a importância histórica, a obra vai proporcionar uma vista privilegiada do Rio de Janeiro inédita para a maioria dos cariocas. “Agora, no período, das férias vamos criar um dia turístico no qual as pessoas interessadas em subir no Chafariz poderão ver o Rio por um ângulo que nunca viram”, contou Anna Secco.
PAUTA ESPECIAL 01/12/2022 - Secretária de Conservação da Prefeitura na Quinta da Boa Vista, Anna Laura.Pedro Ivo/ Agência O Dia
Por outro lado, enquanto uma série de patrimônios materiais têm recebido reparos, a situação degradante de outros salta aos olhos de quem passa pelo Centro do Rio de Janeiro, que reúne a grande maioria das construções tombadas na cidade. O Automóvel Club do Brasil, na Rua do Passeio, está com a fachada repleta de pichações, tem janelas quebradas e chegou a ser invadido em 2018 por dezenas de manifestantes. No ano passado, o prefeito Eduardo Paes revelou a possibilidade de o espaço ser transformado em um hotel, mas ideia não avançou. Noemia Barradas, que já visitou o local, lamentou a situação atual.
“Vistoriei alguns anos atrás. A prefeitura ia fazer uma intervenção, mas não aconteceu. Está lá, jogado. Precisa de uma intervenção. Está em péssimo estado o imóvel. Internamente, ele tinha uma harmonia, integridade. É um espaço muito diferenciado que está sendo abandonado. Já teve uma invasão lá. Não tem segurança, aí as pessoas abusaram”, analisou a arquiteta.
Outra construção em situação ainda mais degradante é a do Palacete São Lourenço, na esquina da Rua dos Inválidos com a Rua Riachuelo, na Lapa. Restam apenas ruínas da fachada construído no século 19, tombada pelo Iphan, e que está em processo de destombamento. O proprietário do terreno quer demolir as ruínas para explorar a área comercialmente e chegou a iniciar a derrubada, mas foi impedido depois de uma denúncia que reverteu o destombamento. Atualmente, o local funciona como um estacionamento. Noemia Barradas, no entanto, considera o restauro da fachada possível, assim como a desapropriação do imóvel para tornar o espaço público, mediante indenização.
“Tem que estabilizar a ruína, reconstruir a fachada. Poderia até ser reconstruído, mas acho que tem que estabilizar ruína existente e transformar a área dele em praça pública”, analisou.
Palacete Visconde de São Lourenço, esquina da Rua do Riachuelo com Rua dos Inválidos.Pedro Ivo/ Agência O Dia
Como um patrimônio é tombado?
Os tombamentos são definidos de acordo com o contexto de importância de um determinado bem para sua localidade e podem ocorrer de diversas formas: a partir de uma iniciativa da sociedade civil, quando a solicitação parte de um cidadão comum, da proposição de proteção do poder executivo via órgãos competentes ou do poder legislativo. Após o pedido inicial, é realizado um dossiê por parte dos institutos de preservação para que seja verificada a necessidade da proteção do patrimônio.
O tombamento pode ser resultado de uma ação do governo federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia ligada ao Ministério do Turismo, estadual, por meio do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), autarquia ligada à Secretaria Estadual de Cultura, ou municipal, por meio do Instituto Rio como Patrimônio da Humanidade (IRPH), ligado à Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (SMPU). Além disso, um bem considerado patrimônio histórico pode ser tombado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), agência da Organização das Nações Unidas (ONU), sediada em Paris.
O processo para iniciar o restauro de patrimônios tombados é burocrático. Antes do início da intervenção, é necessária a abertura de uma licitação para que empresas especializadas concorram pelo direito de realizar a obra. Na Quinta da Boa Vista, por exemplo, foram necessários três contratos: um de engenharia civil, um especializado para ojardim terraço e outro para os monumentos.
“Quando um bem é tombado, é feita uma intervenção de restauro. É uma verba de prefeitura. Uma empresa ganha a licitação em edital e a prefeitura fiscaliza, assim como o Iphan (em caso de tombamento federal), que é o órgão de tutela. Para fazer uma licitação, precisa de um projeto, e tem o acompanhamento para saber se está sendo feito de acordo”, explica Noemia Barradas.
Outros reparos pela cidade
Além das restaurações voltadas para a comemoração do bicentenário, a prefeitura do Rio recuperou outras construções importante para a capital. Um delas é estátua de Noel Rosa, em Vila Isabel, na Zona Norte. A escultura precisou ser refeita em razão dos atos de vandalismo sofridos ao longo dos anos. O próprio artista responsável pela escultura original fez os reparos, concluídos no dia 11 de dezembro de 2021, na data exata da comemoração de 111 anos do compositor. O monumento, que mostra a cena de Noel sendo atendido por um garçom, faz referência ao famoso samba “Conversa de Botequim”. Para evitar que futuros roubos aconteçam, a escultura foi recheada com concreto pesado, além de ter sido instalada uma câmera de segurança para vigiá-la.
Outra ação foi a reativação de diversos chafarizes nas praças da cidade, uma vez que apenas três estavam funcionando. Entre os principais estão o da praça General Tibúrcio, o da Praça Saens Penã, o do Largo do Machado, o do Alto da Boa Vista, a cascata do Jardim do Méier e o chafariz Dança das Águas, que fica em frente à prefeitura, no Centro. Também tem previsão de entregue até março os chafarizes da Praça Paris e da Candelária. Segundo Anna Secco, são agora vinte ativos na cidade. “As grandes cidades turísticas tem seus chafarizes, e aqui no Rio estavam todos desligados. Na Urca, por exemplo, quando se subia no bondinho e olhava para baixo, o que se via era uma bacia velha, toda suja, tudo quebrado. Agora ele olha e está tudo lindo. Um chafariz que fica ligado à noite e com todo mundo tirando foto”, diz ela.
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