Selton MelloDivulgação/Globo/ Camilla Maia

Nesta segunda-feira (9), a Globo finalmente estreia 'Nos Tempos do Imperador'. A novela, que começou a ser gravada antes da pandemia e deu uma longa pausa por conta dos casos de Covid-19, traz o brilhante Selton Mello no papel de Dom Pedro II. Na entrevista a seguir, o ator, que completa 40 anos de carreira, fala sobre seu personagem, vida pessoal, política e também sobre o coronavírus: "Desde o início da pandemia eu não entro em um avião. Não fui a nenhum restaurante, não fui jantar na casa de ninguém, não recebi ninguém aqui em casa. Sou muito respeitoso com essa doença que é muito traiçoeira".
Depois de uma produção densa como é 'Sessão Terapia' , você vai interpretar um personagem importante da história brasileira, um personagem de época. Como vira a chavinha?
Na verdade são chavinhas, porque eu tive que virar a chavinha, desvirar e voltar a virar (risos). Começou a novela em janeiro de 2020, pré-pandemia. Começamos sem imaginar o que estava pela frente e eu já estava ali, descobrindo como fazer Dom Pedro II, vasculhando como fazer esse personagem ter vida própria. Veio a pandemia, tudo parou. E entre agosto e outubro, fizemos o 'Sessão de Terapia'. Inclusive, ali já foi um exercício sobre como descobrir a trabalhar com protocolos, com todos os cuidados, com os testes constantes, com faceshield na equipe, com máscaras na hora do ensaio, tira máscara para gravar, distanciamento dos atores. Depois eu voltei para a novela e voltei sabendo como funcionavam os protocolos. E aí foi desvirar a chavinha e relembrar em que altura do campeonato eu estava no personagem, para continuar contando sua saga.
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A novela ' Nos Tempos do Imperador' começou a produzir e gravar no ano passado e parou por causa da pandemia e voltou a gravar para estrear com mais da metade da trama gravada. Foi complicado para você manter o foco, entrar e sair do personagem?
Não foi complicado, porque desde o início, nas conversas com o Vinícius (Coimbra, diretor artístico) e os autores Alessandro Marson e Thereza Falcão, já tínhamos definido um caminho para ele e eu já tinha uma intuição de como eu gostaria de fazer esse personagem. Claro que parar, voltar, 'Sessão' no meio, é sempre complexo. Mas pelo fato da gente ter colocado a novela no trilho, é um pouco como andar de bicicleta. Os primeiros dias de readaptação, mas passados dois dias tudo já estava de novo nos eixos.
Qual é a diferença ou dificuldade de interpretar um personagem de ficção e um personagem real como Dom Pedro II? O que você descobriu sobre ele que nunca imaginou?
Nossa, descobri muitas coisas sobre ele que não lembrava. A gente estuda na época da escola, mas muitas coisas não ficam fixadas. Agora, lendo essa quantidade de livros e biografias variadas sobre ele, eu redescobri algumas e, mais que isso, descobri muitas coisas. Ele era um homem muito culto, e muitas vezes sentia o peso da coroa. O fato de ter sido colocado naquelas circunstâncias ainda criança e ter assumido o trono na adolescência, o peso dessa responsabilidade. Muitas coisas eu fui descobrindo: ele se refugiava nos livros, falava muitas línguas, traduzia livros do original, 'As mil e uma noites', por exemplo. Ele viajou bastante, fazendo um papel importante de conexão com outras culturas, trazendo modernidades de outras civilizações. Encontrou Victor Hugo, conheceu Nietzsche, conheceu Graham Bell - foi assim que ele trouxe o telefone. Muitas coisas impressionantes na trajetória dele que eu desconhecia.
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Você é um ator jovem, mas no meio é uma referência para muitos dos seus colegas. O que você acha sobre esse 'peso' se podemos chamar assim?
Eu não penso sobre isso. É curioso porque pode ser que eu seja uma referência para os mais jovens, mas não é uma coisa que eu carregue ou pense. Eu simplesmente faço o meu trabalho, entrego o melhor que eu posso sempre, coloco a minha sensibilidade a favor dos personagens que faço quando estou apenas atuando - como é o caso da novela e de tantos outros trabalhos. E quando estou dirigindo e atuando, aí o trabalho não é nem duplicado, é quadruplicado, porque eu tenho que cuidar de muita coisa e ali eu deixo uma marca autoral, diferente de quando eu atuo. Com o que eu tenho nas mãos, eu faço sempre o melhor possível. Tenho uma ligação muito grande com a infância - e, aliás, estou completando 40 anos de carreira e descobri isso durante a pandemia, olhando o verso de uma foto antiga. O fato de ter começado criança me deu logo a dimensão de que atuar é brincar, é leve. E eu sempre tento manter essa capacidade. Adulto, continuo sendo aquela criança que vai para o estúdio, que vê aquilo como algo lúdico e que ajuda as pessoas, faz pensar, emociona, mexe com a imaginação do público - e também a minha. Essa ligação com a infância eu tento manter intacta, porque ela é fundamental para o meu trabalho. Se encontrar ecos em outros atores, eu fico muito feliz. Assim como outros atores me influenciaram. Isso é uma coisa bonita, mas que eu não penso sobre. Eu vou caminhando.
Se não tivesse a carreira de ator no mundo... O que você seria?
Se não houvesse ator, eu seria músico. Se não houvesse música, eu seria escritor. Sempre alguma coisa ligada a tocar o próximo. Eu sou de humanas, talvez fosse psicólogo. Conhecer a mente humana, a espiritualidade. Tudo isso me move, então eu acho que seria esse o caminho. Mas tem a profissão de ator no mundo, então eu tento trazer tudo isso que falei para o meu trabalho de ator.
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Duas qualidades que você admira em outra pessoa?
Discrição é uma coisa que eu adoro. Eu sou muito discreto, admiro essa qualidade nos outros também. A outra é uma coisa que não tem nada a ver comigo: admiro muito as pessoas aventureiras, que viajam muito e se jogam no mundo. Eu sou uma pessoa muito racional. Sou emotivo também, bastante, mas a razão vem na frente. Então eu admiro muito as pessoas que se jogam no mundo de peito aberto. Acho isso bonito e é algo que eu gostaria de ter mais, venho trabalhando internamente para reparar essa falta na minha biografia.
Um personagem que você não fez e gostaria ter feito? Por que?
Difícil essa pergunta. Fiz muitos trabalhos e muitas coisas eu consegui realizar. Talvez algum remake. Já teve até um remake de O Bem-Amado, um personagem que o Paulo Gracindo fez, Odorico Paraguaçu, um personagem extraordinário. O Sinhozinho Malta, de Roque Santeiro seria um personagem incrível que eu gostaria de ter feito, porque me inspirou o jeito que o Lima Duarte fez. Tem muitas coisas da literatura também, mas que um dia eu faço. Espero. Tentarei.
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A gente pouco sabe sobre a vida pessoal. Você é uma pessoa muito discreta ou consegue driblar a curiosidade das pessoas?
Eu sou discreto por natureza. Sou mineiro, fui criado em São Paulo, com as raízes mineiras. Isso está no DNA, sabe? O mineiro não fala, ele faz. Quando você viu, ele já está realizando. Ele não fica cantando a bola, como a gente diz na sinuca - uma coisa que eu gosto, jogar sinuca. Isso é muito natural para mim, não existe esforço. O que eu acho bom, na verdade. Acho que é muito bom para o público, quando assiste um ator, não saber tanto sobre ele e poder mergulhar no personagem, se emocionar com ele, viajar naquele personagem. Acho que hoje em dia com redes sociais, que aumentou a exposição, isso ficou mais difícil ainda. Eu tento me preservar, mesmo estando nesse mundo mais exposto.
O que você gosta de fazer longe das câmeras e do palco? O que ouve em casa ou no carro?
Adoro ficar em casa, sou muito caseiro. Vejo muito filme, leio bastante, ouço mais música dos anos 80, gosto muito de rock. Gosto de jazz, de música clássica. Gosto muito de MPB: Caetano Veloso é um gênio, João Gilberto, Milton Nascimento, Elis Regina, Tom Jobim, Marisa Monte, Luiz Melodia, tantos artistas gigantes. Música é uma coisa muito importante, é uma arte nobre. Acho que toda arte quer ser música. E eu tento, principalmente quando dirijo, transformar o material sobre o qual me debruço em música. Sessão de Terapia eu vejo cada episódio como uma pequena sinfonia - tem um crescente, dali a pouco segura, depois vai com tudo. Isso é bem o desenho de uma sinfonia, né? Acho música fundamental na vida. Cultura em geral, mas música tem um poder de já te arrepiar, emocionar e levar pra algum lugar. Só de ouvir a música ela já te leva para algum lugar (ou uma lembrança) e isso é um poder muito grande.
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Tem alguma coisa que não fez e se arrepende?
Na pandemia eu pensei muito sobre isso que falei antes, a qualidade das pessoas que se jogam mais. Eu viajei muito pouco. Sempre muito trabalho e sobrando pouco espaço para viajar, conhecer lugares. Fiz muito pouco isso. Foi uma ficha que caiu como uma coisa tipo "quando a vida voltar a ter alguma normalidade"... Por exemplo, desde o início da pandemia eu não entro em um avião. Não fui a nenhum restaurante, não fui jantar na casa de ninguém, não recebi ninguém aqui em casa. Sou muito respeitoso com essa doença que é muito traiçoeira. Fico na expectativa do mundo estar vacinado para quando isso estiver sob controle, eu tentar corrigir essa falta na minha trajetória, de viver mais a vida, viajar mais, conhecer lugares que não conheço, voltar a lugares que adorei. Fiz isso muito pouco.
Acha que o artista precisa ser posicionar politicamente? Precisa sempre ter que estar no meio das questões sociais?
Tudo é política. Essa entrevista é um ato político. Política partidária é algo diferente. Não corre nas minhas veias, na maneira como fui criado, essa desenvoltura. Todos devem ser livres para se posicionar à sua maneira. Eu procuro, por exemplo, imprimir uma marca fortemente política nos trabalhos onde sou diretor. Ali é um trabalho autoral, meus filmes, o 'Sessão de Terapia', se forem olhados com esses olhos você encontrará muito do que penso da vida, da sociedade, das desigualdades, das injustiças. Rede social é um caldeirão de informações, muitas vezes confusas e com pouco espaço para maiores aprofundamentos. Então prefiro imprimir minhas mensagens nos meus trabalhos e não me sinto menos ativo politicamente por ser assim. Esse sou eu, ou o que deu pra ser. E uso o espaço de uma entrevista como essa para dizer que vivemos tempos cinzas, flertando diariamente com o obscurantismo, estamos adoecendo dia após dia. Sou absolutamente contra o caminho atual e espero, de coração, que o Brasil volte a ser grande de novo. E coloco esse pensamento em um nível espiritual. Espero um Brasil mais justo, mais alegre, com mais chances para os historicamente desfavorecidos.
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Você tem uma voz pausada, calma e parece que para te tirar do sério, a pessoa vai ter muito trabalho. É isso mesmo? Você se cobra muito?
De fato, procuro me conhecer. Faço terapia, meditação transcendental, tenho conexões espirituais, gosto de astrologia. Autoconhecimento nunca é demais. Eu sempre aprofundo, cada vez mais e mais esse meu lado, que ganha mais força na minha vida. E a arte, que sempre foi um fim, cada vez mais está virando um meio para expressar esse lado espiritual. Me cobro muito? Sim! Mas já me cobrei muito mais. Hoje em dia é muito mais suave, não tem nem comparação. Acho que esse autoconhecimento foi aditivando o artista que sou e talvez esse seja o meu caminho daqui para frente.
O que ainda te falta na vida e na carreira?
Na vida é isso, viver mais intensamente, viajar mais... Como eu viajei pouco! Quero fazer mais, e é uma coisa que precisa de disciplina. Sou capricorniano, trabalho! É quase como se eu colocasse no meu trabalho toda a energia. Inclusive, a energia que uma viagem proporciona, que uma aventura proporciona. Acaba que a aventura é o meu trabalho; a viagem é o meu trabalho. E isso é muito bom, mas eu quero e já estou começando a mudar o rumo das coisas. Na carreira, é seguir vivo, atento, curioso, interessado, com os olhos brilhando, com a mesma energia do menino que começou tão cedo. Continuar de mãos dadas com esse menino.