Esperando a neve, tricotando na Água (gelada) Santa
'Aos machões de plantão: já estou aprendendo a fazer tricô. Aos interessados, posso passar o contato da professora. Prometo sigilo absoluto. Palavra de jornalista'
Por Luarlindo Ernesto
O Principado da Água Santa tem amanhecido, e anoitecido, deserto. Poucas pessoas nas ruas, mesmo durante o dia. Até pensei que estávamos em algum feriadão. O Refogado, dono e cozinheiro do point alcoólico aqui da região, confirmou que, praticamente, a freguesia desistiu da cerveja e aderiu totalmente às batidinhas de limão, acerola e pitanga (que ele pega aqui, no quintal da caverna). A temperatura baixa é estímulo às bebidas chamadas de quentes, consideradas também convenientes para acompanhar os quitutes, feitos praticamente na hora.
Os fregueses (eu chamo eles de sócios-atletas) pediram alteração no cardápio e, a partir de agora, vão rolar uns caldinhos de feijão, de piranha, sopinha de angu com salgados (portugueses chamam de Papas a Lombeira) e o infalível caldo verde. Esperto esse comerciante dos secos e molhados. Colocou uma pequena churrasqueira, com brasas, como lareira, para aquecer o ambiente. Diz ele que é para ficar aconchegante.
Lembrei que tem a turma que ainda rala, que sai cedinho de casa para enfrentar o batente. Com um frio de lascar, esse pessoal deixou de usar as bermudas e camisetas. Não esqueçam que o bairro fica um pouco abaixo da Serra dos Pretos Forros. Por isso, as temperaturas são amenas e, às vezes, baixas. Só falta a neve! Observador que sou, cronometrei: entre seis e sete horas da matina, o cheiro de naftalina invade ruas do bairro. São os velhos agasalhos, guardados, por muito tempo, nos armários e desentocados a toque de caixa. Vi uns poucos vizinhos usando luvas e cachecol.
Em meio a esses detalhes, o Fred me telefonou e me convidou para encarar as comidas típicas que ele prepara, tudo à moda suíça, fumegante. Difícil resistir. Aproveito a ocasião, caso aceite o convite-intimação, e levo salsaparrilha para fazer umas misturas. Não passei as receitas com essa erva para o dono do bar. Mas, o Cadu, o meu neto postiço nº 1, já provou algumas. Confesso que ele não gostou. O cara é chegado ao vinho, meio sofisticado, tadinho. Neste domingo, ele emplaca 40 anos de idade. Arariboia, o cacique que ajudou a derrotar os franceses em Niterói (lembram?), foi acionado para reunir os pajés e afastar a possibilidade de chuvas na cidade vizinha. É que a festa vai ser em praça pública, lá nas bandas de Icaraí. Vai ter medição de temperatura corpórea, distribuição de álcool gel (para mãos) e álcool líquido (para desinfetar gargantas). Ouvi falar que a mãe dele está preparando, além de torresmos, quentão, em tonéis...Entenderam? Será que vão chamar a PM?
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O meu problema é que estou proibido de frequentar esses embalos. O doutor Adolfo Silvestre, o médico que me conserta, proibiu-me de frequentar aglomerações (álcool, só para as mãos). Vida difícil com pandemia. O Paulo Polido, que também está em retiro forçado, lá na Região dos Lagos, vez por outra me consola com suas palavras sábias e cheias de esperança. Melhor eu continuar varrendo o quintal, alimentando os pássaros e contando histórias. Para suportar o frio, a vestimenta de esquimó está limpa, sem cheiro de naftalina e engomada no calor do ferro a carvão. Esqueceram que o preço da energia elétrica aumentou o KW/hora ? Aposentei o aquecedor de ambiente, que funciona com gás. O botijão tá muito caro, também.
Para aquecer os pés, na hora de dormir, estou usando sacos de água quente envolvidos em toalhas felpudas. Deixam os pés quentinhos. E, dois cobertores envolvendo a carcaça, além da touca, tipo ninja, encobrindo cabeça, orelhas, nariz (que é grande) e parte do pescoço. É, bancarei o urso, hibernando na caverna com wifi, aguardando a primavera e o fim do isolamento. Aos machões de plantão: já estou aprendendo a fazer tricô. Aos interessados, posso passar o contato da professora. Prometo sigilo absoluto. Palavra de jornalista.
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