Rio - "Nem sei o que dizer para ele. Só tenho que chorar junto", disse o entregador Daniel Rosa, de 29 anos, sobre o irmão de 7 anos, que viu o pai morrer após ter o carro metralhado pelo Exército, neste domingo, em Guadalupe. A criança estava no carro do músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, com a família indo para uma festa quando os militares efetuaram mais de 80 disparos. Na ação, duas pessoas ficaram feridas por balas perdidas. Daniel foi criado por Evaldo, a quem chama de pai.
Em nota, logo depois do crime, o Comando Militar do Leste chegou a dizer que "a patrulha deparou com um assalto e dois criminosos a bordo de um veículo atiraram contra os militares... Como resultado, um dos assaltantes foi a óbito no local e o outro foi ferido". Horas depois, informou que os militares estavam sendo interrogados na Delegacia de Polícia Judiciária Militar (DPJM).
Segundo o CML, na manhã desta segunda-feira, os depoimentos de 14 pessoas, entre militares e civis, começaram a noite e ainda continuam hoje, por determinação do Comando Militar do Leste e orientação do Ministério Público Militar (MPM).
"Meu irmão está traumatizado. Só chora e fala 'quero meu pai agora. Por que meu pai não está aqui'", contou Daniel, dizendo que a família vai processar a União. "Por que o Exército está dizendo que meu pai é bandido? Eu quero uma explicação. Meu pai era trabalhador, sustentou a família. Tudo que sou devo a ele, que me deu carinho, amor, que chamou a minha atenção quando foi preciso, que me orientou", lembrou o filho, chorando. "O que o governo vai fazer? Passar a mão nas minhas costas", questionou o filho da vítima.
"Como matam uma pessoa com mais de 80 tiros? Como explicar para uma criança de sete anos o que aconteceu?", desabafou Jane Maria Rosa dos Santos, irmã de Evaldo. Ela contou que a família quer justiça e vai provar que o músico não era bandido. "Estamos sentindo duas dores: a morte do meu irmão, que era um homem trabalhador, e o que disseram dele, que seria bandido. Ele não era bandido. Era pai, chefe de família e trabalhador. Queremos justiça. Vamos até o fim. Queremos una explicação do governo", disse Jane Maria.
Fábio Paulo de Carvalho passou pelo local e chegou a ouvir os disparos, mas não imaginou que se tratava da morte do amigo de infância. "Fiquei sabendo da morte dele quando cheguei em casa. Eu tinha passado pelos militares que sempre ficam ali, próximo ao depósito da Comlurb. Tinha acabado de estacionar o carro quando ouvi os disparos. Foi muito tiro. Logo depois um vizinho disse que Manduca havia sido morto pelo pessoal do Exército", contou ele, que foi para o local.
"Cheguei la a mulher dele, Lúcia, que é enfermeira estava tentando salvá--lo. Ela disse que era enfermeira e que sabia o que fazer, mas os militares não deixaram", disse Fábio, lembrando dos tempos de convivência com o amigo.
"Crescemos juntos. O primeiro grupo de pagode de Manduca (apelido de Evaldo Rosa) ganhou o nome de Só Cunhados porque era formado pelo pessoal das famílias do grupo de amigos. Eles mataram uma pessoa honesta, trabalhadora", lamentou ele.
O corpo de Evaldo será sepultado na tarde desta segunda-feira, mas ainda não há horário e nem local do sepultamento.
Este foi o segundo caso em um intervalo de 60 horas. Na madrugada de sexta-feira, por volta de 2h, Christian Felipe Santana de Almeida Alves, 19, foi morto por um tiro de fuzil no peito pelo Exército na Vila Militar, em Realengo. A corporação alegou que o jovem foi baleado, na madrugada de sexta-feira, após a moto em que ele estava na garupa furar um bloqueio e o chamou de criminoso. A família negou e contestou a afirmação que o rapaz era bandido.
'Tudo indica' que carro foi fuzilado por engano
O delegado Leonardo Salgado, da Delegacia de Homicídios (DH-Capital), disse que "tudo indica" que os militares do Exército fuzilaram o carro da família de Evaldo Rosa dos Santos, que acabou morto, ao confundir com um veículo de criminosos. Dentro do automóvel ainda estava a mulher e a filha da vítima, uma criança de 5 anos, que escaparam ilesos.
"Foram diversos disparos de arma de fogo efetuados e tudo indica que os militares realmente confundiram o veículo com um veículo de bandidos. Mas neste veículo estava uma família. Não foi encontrada nenhuma arma (no carro). Tudo que foi apurado era que realmente era uma família normal, de bem, que acabou sendo vítima dos militares", falou Salgado, em entrevista a TV Globo.
A afirmação vai de encontro com a dos familiares do músico Evaldo Rosa, que afirmam que os militares alvejaram o carro da família após confundir os ocupantes com bandidos. Inicialmente, o Comando Militar do Leste (CML) afirmou que o morto era um criminoso que passou em um veículo com um comparsa atirando contra os soldados, e estes teriam revidado a uma "injusta agressão". Depois, determinou a coleta de depoimentos dos militares e civis para apurar o ocorrido.