No Pavão-Pavãozinho, na localidade Vietnã, com vista para o skyline da Zona Sul e mar, famílias encontraram a solução para a moradia em casas de barroReginaldo Pimenta / Agencia O Dia

Rio -"Entra, minha preta. Não repara na bagunça. Aqui tá quentinho". O calor ao qual Maria Eunice Guimarães se referia emanava do fogão improvisado, feito com galhos de árvore, no chão do casebre construído com barro e madeira, do Vietnã: a parte alta e pobre do Pavão-Pavãozinho. A catadora de latinhas mora sozinha em 5m², mas não é a única em uma moradia precária. A vista do skyline da Zona Sul com o mar ao fundo também é emoldurada por paredes de lama socada em outras cinco casas vizinhas.

Na região mais rica do Rio, a miséria se fixou a mais de 200 metros de altura, fora do acesso até de mototáxistas. Para ir até o Vietnã é preciso subir cerca de 1h a pé, serpenteando pelos becos e escadas da favela. "O plano inclinado ajudou bastante. Ele tem cinco estações. Mas, depois, tem que ir andando. Quem mora lá em cima, se tiver um compromisso, tem que sair bem cedo de casa", disse Sheila Rodrigues, ascensorista do transporte, instalado no governo de Leonel Brizola, em 1985. O elevador ocupa o caminho aberto em uma tragédia: um dia após o Natal de 1983, uma imensa caixa d'água despencou, matando 20 pessoas, entre elas, bebês e crianças.

E são crianças a maioria dos moradores do Vietnã. Em uma das casas, com uma mãe solteira, moram quatro irmãos. Um deles brincava no chão de terra batida, no mesmo solo em que ratazanas passavam. A casa deles, fechada até o teto, torna os dias quentes insuportáveis. Quando chove, o chão alaga. Na última chuva, perderam o fogão. Na localidade, não há saneamento básico.

Típicas do nordeste, as casas de barro são apontadas pelo Ministério da Saúde como moradias inadequadas, já que podem abrigar insetos e transmitir doenças, a mais conhecida como Doença de Chagas, que no ano passado teve três casos no Rio.

Em outra casa, mora Maria Aparecida Araújo da Silva, 43, também mãe solteira, e seus quatro filhos, o menor de sete anos. Com um galinheiro no quintal, a casa tem dois beliches que acomodam a todos. No outro cômodo, o fogão divide espaço com o vaso sanitário. Ela contou que construiu a casa sozinha, após ficar desempregada. "Morava de aluguel em uma casa na parte baixa. Mas perdi o emprego em uma academia na pandemia. Agora, faço faxina e ganho por diária", disse. Maria Aparecida também é mãe de outros cinco filhos, já adultos.

Maria Eunice Guimarães, 64 anos, cozinha em fogão improvisado dentro de sua casa, no Vietnã do Pavão-Pavãozinho - Reginaldo Pimenta / Agencia O Dia
Maria Eunice Guimarães, 64 anos, cozinha em fogão improvisado dentro de sua casa, no Vietnã do Pavão-PavãozinhoReginaldo Pimenta / Agencia O Dia
A casa mais recente é a de Maria Eunice, que perdeu a residência anterior, também de barro, em um deslizamento. Sua história é marcada pelo crack. Filha de uma usuária de drogas, conta que ao nascer caiu dentro de um vaso sanitário. Crescendo nas ruas, também passou a usar a mesma droga; quando jovem teve dois filhos com outros usuários. Ela sabe que a filha está na cracolândia do Jacarezinho; o rapaz, na Central do Brasil. O contato com ambos é esporádico.

"Nasci dentro de um vaso, mas escolhi não ser bosta. Larguei a droga, foi muito difícil. E construí essa casinha", contou, limpando as lágrimas com as mãos sujas dos gravetos queimados para aquecer seu almoço. A vida pobre tornou saber a data de aniversário um luxo. "Não sei quantos anos eu tenho. Você pode ver a minha identidade?". Após ler o documento, que tinha escrito em vermelho 'impossibilitado de assinar', apontando que pertencia a uma analfabeta, a reportagem informou que ela completara 64 anos no dia 24 de abril.

No lixo, ela encontrou a decoração para a casa. Reclama que com o fechamento de um ferro-velho, onde conseguia cerca de 50 reais por semana vendendo metal, sua renda caiu. Orgulhosa, mostrou interruptores que conseguiu comprar. "É para colocar na minha casa, quando tiver luz", disse. Para passar o tempo, gosta de ficar sentada na varanda, olhando o mar de Ipanema, no qual nunca entrou.
Vietnã: localização encarece obras; Prefeitura e Governo prometem projetos 
Ninguém sabe explicar ao certo o motivo do nome Vietnã, país palco de uma guerra contra os Estados  Unidos, durante 20 anos. Assim como na época do conflito, o Vietnã do Pavão-Pavãozinho possui natureza exuberante e famílias necessitadas. A proximidade com o cume do Morro do Cantagalo faz papagaios, sabiás e beija-flores voarem pela localidade.
Dessa região que um traficante, em 2006, foi baleado e despencou nas pedras, em ação filmada por um morador da Lagoa Rodrigo de Freitas. No mês passado, um cavalo, que pertenceria a um traficante, caiu do mesmo local nas pedras. A comunidade atualmente está ocupada pela Polícia Militar.
Campo do Vietnã é utilizado para pousos de helicópteros em operações policiais - Reginaldo Pimenta / Agencia O Dia
Campo do Vietnã é utilizado para pousos de helicópteros em operações policiaisReginaldo Pimenta / Agencia O Dia
A região abriga também o chamado campo de futebol do Vietnã, muito utilizado para pouso de helicópteros durante ações policiais. Moradores afirmaram que o senador Romário (PL), quando em campanha para o Senado, prometeu colocar grama sintética e iluminação no campo. Procurado, ele explicou que foi na campanha para o governo. "A promessa foi feita caso eu fosse eleito governador, o que não ocorreu. Isso não cabe ao legislativo. Mas me disponibilizo a ir até o local e encontrar uma solução", disse o senador, à reportagem.
A presidente da Associação de Moradores, Fernanda Faustino, afirmou que há um terreno na rua Saint Roman, pertencente ao governo federal, previsto para a construção de um prédio. "Durante o PAC do governo Dilma, foram construídos prédios que abrigaram algumas famílias. Um outro edifício estava previsto para esse terreno, na rua Sanit Roman, mas até hoje não saiu do papel", disse. Para a presidente, a comunidade também enfrenta, atualmente, problema no escoamento do lixo, já que o sistema de coleta feito através de uma caneleta de concreto está paralisado. Há ainda necessidade de melhorias em pracinhas para as crianças e falta de luz em algumas residências.
Sobre o Vietnã, ela aponta que a localização encarece obras no local. "Para levar um saco de areia até lá, por exemplo, é difícil, pelo acesso. Então, há um custo extra, o que na prática torna esse saco três vezes mais caro. Os moradores não têm condições de arcar e muitos constroem casas de barro e madeira", explicou Fernanda.
Em notas, a Prefeitura e o Governo do Estado afirmaram que possuem projetos para a região. "O Governo do Rio de Janeiro planeja uma série de melhorias para a comunidade Pavão-Pavãozinho, como obras de infraestrutura, reforma de conjunto habitacionais, projetos de saneamento básico e revitalização de equipamentos públicos", disse a assessoria do Governo.
Já a Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Habitação, responsável pela construção de moradias, também apontou que estuda um projeto para a comunidade. "A Secretaria Municipal de Habitação recentemente relançou o Programa Morar Carioca. O projeto está em fase de estudo, elaboração de projetos e mapeamento de áreas para que os serviços de habitação e urbanização sejam expandidos nas regiões mais necessitadas".